STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 2231205 - SE (2024/0244876-0)
ecorrido o afastou por entender que a conduta do banco foi lícita e que a autora se beneficiou dos valores do empréstimo. Tal raciocínio é equivocado. Conforme demonstrado, a conduta foi ilícita, pois violou a regra da impenhorabilidade e configurou prática abusiva. O fato de a recorrente ter utilizado o crédito não legitima o meio de cobrança empregado pelo banco. A retenção de valores de caráter alimentar, essenciais à sobrevivência, configura dano moral na modalidade in re ipsa, ou seja, dano presumido. A angústia, a insegurança e o abalo psicológico decorrentes da privação abrupta de recursos destinados ao sustento próprio e da prole são consequências diretas e inevitáveis do ato ilícito praticado pelo banco. Não se trata de mero aborrecimento, mas de grave ofensa à dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, a sentença de primeiro grau, ao reconhecer a ilicitude dos descontos, determinar a restituição dos valores e fixar uma indenização por danos morais, deu a correta solução à lide, aplicando adequadamente o direito à espécie. O valor da indenização, fixado em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), mostra-se razoável e proporcional às circunstâncias do caso, não merecendo reparo. Dessa forma, o acórdão recorrido deve ser cassado, com o restabelecimento integral da sentença proferida em primeiro grau de jurisdição. Ante o exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para cassar o acórdão recorrido e restabelecer integralmente a sentença proferida pelo Juízo de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Nossa Senhora do Socorro/SE, nos autos do processo n. 202300847078, inclusive no que tange aos ônus sucumbenciais ali definidos. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 04 de novembro de 2025. Ministro Humberto Martins Relator
Decisão completa:
RECURSO ESPECIAL Nº 2231205 - SE (2024/0244876-0)
RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS
RECORRENTE : MARIA IVONETE SANTOS
ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SERGIPE
RECORRIDO : BANCO DO ESTADO DE SERGIPE S/A
ADVOGADOS : HAROLDO WILSON MARTINEZ DE SOUZA JUNIOR -
SE000589A
MARIZZE FERNANDA LIMA MARTINEZ DE SOUZA
PACHECO - SE000588A
EDUARDO SILVEIRA LEITE - SE000589
DECISÃO
Cuida-se de recurso especial interposto por MARIA IVONETE SANTOS,
representada pela Defensoria Pública do Estado de Sergipe, com fundamento no artigo 105,
inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE.
O apelo nobre origina-se de ação de obrigação de fazer c/c repetição de
indébito c/c inexistência de débito c/c indenização por danos morais com pedido de tutela
de urgência, ajuizada pela recorrente em face do BANCO DO ESTADO DE SERGIPE S.
A. – BANESE.
Conforme se extrai dos autos, a autora, ora recorrente, alegou que a
instituição financeira recorrida vinha realizando descontos indevidos em sua conta-
corrente, a qual fora aberta por determinação judicial com a finalidade exclusiva de receber
valores a título de pensão alimentícia destinada a seus filhos. Tais descontos visavam à
amortização de débitos oriundos de contrato de cheque especial e tarifas bancárias.
O Juízo de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Nossa Senhora do Socorro
/SE, ao sentenciar o feito, julgou procedentes os pedidos autorais (fls. 217-218 e 226-227),
para: a) condenar o banco à restituição simples dos valores descontados a título de juros de
empréstimo automático (cheque especial) e de plano de tarifas; b) condenar a instituição
financeira ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco
mil reais); e c) determinar que a conta bancária fosse identificada unicamente como conta
poupança.
Inconformado, o banco recorrido interpôs recurso de apelação, ao qual o
Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe deu provimento para reformar integralmente a
sentença e julgar improcedentes os pedidos autorais.
O acórdão (fls. 216-220) ficou assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL – CONSUMIDOR AÇÃO DE
OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C REPETIÇÃO DE
INDÉBITO C/C INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COM PEDIDO
DE TUTELA DE URGÊNCIA – LIBERDADE PARA
CONTRATAR CONTRATO VÁLIDO – DESCONTOS
DEVIDOS – AUSENTE DANO MORAL – AUTORA QUE
FOI BENEFICIADA COM VALORES RELATIVOS A
EMPRÉSTIMO – REALIZAÇÃO DE SAQUES – PEDIDOS
AUTORAIS IMPROCEDENTES – RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO – REFORMA DA SENTENÇA
– DECISÃO UNÂNIME.
Nas razões do recurso especial (fls. 224-243), a recorrente alega violação dos
artigos 833, inciso IV, do Código de Processo Civil; 6º, inciso VI, e 39, inciso IV, do
Código de Defesa do Consumidor; e 186, 187 e 927 do Código Civil. Sustenta, em síntese,
a ilegalidade da retenção de verba de natureza alimentar (pensão alimentícia) para cobrir
saldo devedor de conta-corrente, ainda que exista cláusula contratual autorizativa, dada a
sua impenhorabilidade. Argumenta que a conduta do banco constitui prática abusiva e gera
dano moral in re ipsa, pleiteando o restabelecimento da sentença de primeiro grau. Afirma,
ainda, a não incidência da Súmula n. 7/STJ, pois a discussão é de direito, e não de fato.
Foram apresentadas contrarrazões pelo recorrido (fls. 256-266).
O recurso especial teve seu seguimento negado na origem (fls. 269-277), com
base na ausência de prequestionamento dos dispositivos invocados e na incidência da
Súmula n. 7/STJ.
Contra essa decisão a recorrente interpôs agravo em recurso especial (fls. 285-
295), rebatendo os fundamentos da inadmissão e reiterando a tese de que a controvérsia é
eminentemente jurídica.
Foram apresentadas contrarrazões ao agravo em recurso especial às fls. 297-
299.
Em decisão proferida em 3 de setembro de 2025 (fl. 312), este Relator
conheceu do agravo para determinar sua conversão em recurso especial, a fim de
possibilitar um melhor exame da controvérsia.
É, no essencial, o relatório.
De início, impõe-se a análise dos pressupostos de admissibilidade do recurso
especial, os quais foram suscitados como óbice tanto nas contrarrazões quanto na decisão
de inadmissibilidade proferida pelo Tribunal de origem.
A instituição financeira recorrida e a Presidência do Tribunal a quo
apontaram a ausência de prequestionamento dos artigos 6º, inciso VI, e 39, inciso IV, do
CDC, e 833, inciso IV, do CPC, bem como a necessidade de reexame de provas para a
análise da controvérsia, o que atrairia a incidência da Súmula n. 7/STJ.
Contudo, examinando detidamente o acórdão recorrido, verifica-se que tais
óbices não merecem prosperar. A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido
de que o prequestionamento não exige a menção expressa do dispositivo legal tido por
violado, bastando que a questão jurídica federal tenha sido efetivamente debatida no
acórdão recorrido. É o que se convencionou chamar de prequestionamento implícito.
No caso em tela, o Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, ao decidir sobre
a legalidade dos descontos, partiu de duas premissas fundamentais: a de que a relação era
de consumo e a de que a conta-corrente em questão recebia "pensão alimentícia" (fl. 219).
Ao validar a retenção desses valores para quitar dívida bancária, o órgão julgador apreciou,
ainda que de forma indireta, o núcleo essencial da norma contida no artigo 833, IV, do
CPC, que trata da impenhorabilidade de verbas de natureza alimentar. Da mesma forma, ao
afastar a ilicitude da conduta e, por conseguinte, o dano moral, o Tribunal debateu a
matéria de fundo dos artigos 6º, VI, do CDC e 186, 187 e 927 do Código Civil. Assim, a
matéria jurídica encontra-se devidamente prequestionada.
Quanto à Súmula n. 7/STJ, sua aplicação também deve ser afastada. A
recorrente, em suas razões, é clara ao afirmar que não pretende rediscutir as premissas
fáticas estabelecidas pelo acórdão, a saber: que a conta foi aberta para recebimento de
pensão, que havia um contrato com cláusula autorizativa e que o crédito do cheque especial
foi utilizado. A questão submetida a esta Corte é puramente de direito: a revaloração
jurídica desses fatos. Pretende-se definir se, diante desse quadro fático incontroverso, a
conduta do banco é lícita à luz da legislação federal. Tal análise não se confunde com o
reexame de provas, sendo plenamente cabível na via do recurso especial.
Superados os óbices de admissibilidade, passo à análise do mérito recursal.
A controvérsia central, como bem delimitado pela recorrente, consiste em
definir a legalidade da apropriação, por instituição financeira, de valores depositados em
conta-corrente a título de pensão alimentícia, para fins de amortização de saldo devedor
oriundo de contrato de cheque especial, ainda que tal prática esteja amparada em cláusula
contratual de adesão.
A resposta a essa indagação passa, necessariamente, pela análise da natureza
jurídica da verba em questão e do alcance da proteção conferida pelo ordenamento jurídico.
O artigo 833, inciso IV, do Código de Processo Civil estabelece de forma
categórica a impenhorabilidade dos "vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as
remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem
como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor
e de sua família". A ratio da norma é evidente: proteger o patrimônio mínimo do devedor,
garantindo-lhe os recursos indispensáveis à sua subsistência e à preservação de sua
dignidade, em consonância com os princípios fundamentais da Constituição da República.
A pensão alimentícia, por sua própria definição e finalidade, representa a
expressão máxima de verba de natureza alimentar. São valores destinados a suprir as
necessidades vitais do alimentando, como moradia, alimentação, saúde e educação.
Permitir que tais recursos sejam desviados de sua finalidade precípua para satisfazer
créditos de outra natureza seria esvaziar por completo a proteção legal e constitucional.
O Tribunal de origem, ao validar os descontos, fundamentou sua decisão na
existência de um contrato válido e na utilização do crédito pela recorrente. Contudo, essa
análise mostra-se superficial e desconsidera a especialíssima natureza dos valores que
transitavam na conta. O fato de os valores da pensão alimentícia serem depositados em
uma conta-corrente não lhes retira o caráter alimentar nem a proteção da
impenhorabilidade. A proteção legal adere à verba, e não ao tipo de conta bancária em que
é depositada.
Nesse sentido, cito:
AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL. RETENÇÃO DE VALOR DEPOSITADO A
TÍTULO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA.
IMPENHORABILIDADE. REVISÃO. SÚMULA STJ/7.
MULTA COMINATÓRIA. DESCUMPRIMENTO DE
ORDEM JUDICIAL. CABIMENTO. VALOR DA MULTA.
REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ.
PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA.
1.- Concluiu o Tribunal a quo, com fundamento nas provas
dos autos, que a constrição havia recaído sobre valores
depositados a título de pensão alimentícia, que são
impenhoráveis, nos termos do art. 649, o Código de Processo
Civil. A revisão do julgado seria necessário o revolvimento
de matéria de prova dos autos, o que é vedado em recurso
especial, nos termos da Súmula 7/STJ.
2.- A convicção a que chegou o Acórdão recorrido, tendo
entendido pela necessidade de aplicação da multa, decorreu
da análise do conjunto fático-probatório, e o acolhimento da
pretensão recursal demandaria o reexame do mencionado
suporte, obstando a admissibilidade do Especial à luz da
Súmula 7 desta Corte.
3.- No que se refere ao valor da multa diária por
descumprimento de ordem judicial, à ofensa ao artigo 461, §§
4º e 6º do Código de Processo Civil, esta Corte já se
manifestou no sentido de que incide o óbice da Súmula 7
desta Corte (REsp n. 638.806/RS, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ
17.12.04; AgRg no AG n. 510.177/RJ, Rel. Min. CASTRO
FILHO, DJ 20.06.05), sendo lícita a sua revisão, nesta
instância, apenas nos casos em que o valor fosse irrisório ou
exagerado ou, ainda, em que fosse flagrante a impossibilidade
de cumprimento da medida, o que não ocorre no caso.
4.- O conteúdo normativo dos artigos 2º, § 1º, da LICC e 188
do Código Civil não foi objeto de debate no v. Acórdão
recorrido.
Incide, na espécie, a Súmula 211 desta Corte.
5.- Agravo Interno improvido.
(AgRg no AREsp n. 170.141/SP, relator Ministro Sidnei
Beneti, Terceira Turma, julgado em 26/6/2012, DJe de
29/6/2012. )
A conduta do banco, ao debitar diretamente da conta os valores para quitar o
saldo devedor, configura, na prática, uma forma de autotutela, uma apropriação que,
embora não seja uma penhora em sentido estrito (ato judicial), produz o mesmo efeito
prático: a expropriação de verba legalmente protegida. Se nem mesmo ao Poder Judiciário
é lícito, como regra, penhorar tais verbas para o pagamento de dívidas comuns, com maior
razão não se pode admitir que a instituição financeira o faça por ato próprio, valendo-se de
sua posição contratual dominante.
Sob a ótica do Direito do Consumidor, a conclusão não é diversa. O acórdão
reconheceu a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à relação entre as partes
(fl. 218). No entanto, falhou ao não extrair as devidas consequências dessa premissa. Em se
tratando de um contrato de adesão, no qual a recorrente não teve a possibilidade de discutir
as cláusulas, a disposição que permite ao banco se apropriar de verbas alimentares é
flagrantemente abusiva.
Nos termos do artigo 51, inciso IV, do CDC, são nulas de pleno direito as
cláusulas contratuais que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé
ou a equidade". Permitir que o banco, ciente da finalidade alimentar da conta, utilize os
valores destinados à subsistência da família da correntista para quitar débitos de cheque
especial é, sem dúvida, colocar a consumidora em desvantagem exagerada e violar o
princípio da boa-fé objetiva, que deve nortear todas as relações contratuais. A
vulnerabilidade do consumidor é aqui agravada pela natureza essencial dos recursos em
jogo.
Portanto, a cláusula contratual que embasou a conduta do banco é nula, e a
prática, abusiva, nos termos dos artigos 39, IV, e 51, IV, do CDC.
Por fim, no que tange ao dano moral, o acórdão recorrido o afastou por
entender que a conduta do banco foi lícita e que a autora se beneficiou dos valores do
empréstimo. Tal raciocínio é equivocado. Conforme demonstrado, a conduta foi ilícita,
pois violou a regra da impenhorabilidade e configurou prática abusiva. O fato de a
recorrente ter utilizado o crédito não legitima o meio de cobrança empregado pelo banco.
A retenção de valores de caráter alimentar, essenciais à sobrevivência,
configura dano moral na modalidade in re ipsa, ou seja, dano presumido. A angústia, a
insegurança e o abalo psicológico decorrentes da privação abrupta de recursos destinados
ao sustento próprio e da prole são consequências diretas e inevitáveis do ato ilícito
praticado pelo banco. Não se trata de mero aborrecimento, mas de grave ofensa à dignidade
da pessoa humana.
Nesse contexto, a sentença de primeiro grau, ao reconhecer a ilicitude dos
descontos, determinar a restituição dos valores e fixar uma indenização por danos morais,
deu a correta solução à lide, aplicando adequadamente o direito à espécie. O valor da
indenização, fixado em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), mostra-se razoável e proporcional às
circunstâncias do caso, não merecendo reparo.
Dessa forma, o acórdão recorrido deve ser cassado, com o restabelecimento
integral da sentença proferida em primeiro grau de jurisdição.
Ante o exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para
cassar o acórdão recorrido e restabelecer integralmente a sentença proferida pelo Juízo de
Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Nossa Senhora do Socorro/SE, nos autos do
processo n. 202300847078, inclusive no que tange aos ônus sucumbenciais ali definidos.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 04 de novembro de 2025.
Ministro Humberto Martins
Relator