RECURSO – INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE IN- CONSTITUCIONALIDADE. ART. 82 DA LEI MU- NICIPAL Nº 59.937/2021, E ARTS. 41 E 42 DA LEI MUNICIPAL Nº 6.155/2017, AMBAS DE JACAREÍ. DIREITO URBANÍSTICO. Normas que disciplinam a destinação para área dominial de 2% da área total da gleba loteada como “área de interesse social” a tí- tulo de doação para o Município. Invasão de compe- tência. Competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de Direito Urbanístico e suple- mentar do Município nos termos do art. 24, I, § 1º da CF. Doação de percentual de lotes particulares para compor áreas dominiais. Inadmissibilidade. Confisco da propriedade privada sem prévia e justa indeniza- ção. Violação ao art. 5º, XXII e XXIV, da CF. Incons- titucionalidade reconhecida. Incidente acolhido, com determinação.(TJSP; Processo nº 0005374-26.2025.8.26.0000; Recurso: recurso; Relator: ADEMIR BENEDITO; Data do Julgamento: 21 de maio de 2025)
, em Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo,
proferir a seguinte decisão: “ACOLHERAM A ARGUIÇÃO. V.U.”, de confor-
midade com o voto do Relator, que integra este acórdão. (Voto nº 56057)
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FER-
NANDO TORRES GARCIA (Presidente), CAMPOS MELLO, MATHEUS
FONTES, RICARDO DIP, FIGUEIREDO GONÇALVES, GOMES VARJÃO,
ÁLVARO TORRES JÚNIOR, LUCIANA BRESCIANI, LUIS FERNANDO
NISHI, JARBAS GOMES, MARCIA DALLA DÉA BARONE, SILVIA RO-
CHA, NUEVO CAMPOS, RENATO RANGEL DESINANO, AFONSO FARO
JR., JOSÉ CARLOS FERREIRA ALVES, LUIS SOARES DE MELLO, LUIZ
EURICO, GERALDO WOHLERS, PAULO ALCIDES, BERETTA DA SIL-
VEIRA, FRANCISCO LOUREIRO, DAMIÃO COGAN e VICO MAÑAS.
São Paulo, 21 de maio de 2025.
ADEMIR BENEDITO, Relator
Ementa: INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE IN-
CONSTITUCIONALIDADE. ART. 82 DA LEI MU-
NICIPAL Nº 59.937/2021, E ARTS. 41 E 42 DA LEI
MUNICIPAL Nº 6.155/2017, AMBAS DE JACAREÍ.
DIREITO URBANÍSTICO. Normas que disciplinam
a destinação para área dominial de 2% da área total
da gleba loteada como “área de interesse social” a tí-
tulo de doação para o Município. Invasão de compe-
tência. Competência privativa da União para legislar
sobre normas gerais de Direito Urbanístico e suple-
mentar do Município nos termos do art. 24, I, § 1º da
CF. Doação de percentual de lotes particulares para
compor áreas dominiais. Inadmissibilidade. Confisco
da propriedade privada sem prévia e justa indeniza-
ção. Violação ao art. 5º, XXII e XXIV, da CF. Incons-
titucionalidade reconhecida. Incidente acolhido, com
determinação.
VOTO
Trata-se de incidente de inconstitucionalidade de lei, suscitado pela C.
1ª Câmara de Direito Público deste E. Tribunal de Justiça, no julgamento de
recurso de apelação de sentença de procedência de ação anulatória de doação
compulsória ajuizada por Norsul Empreendimentos de Administração Ltda. em
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face do Município de Jacareí.
A controvérsia cinge-se quanto à necessidade de serem os autos remeti-
dos ao Egrégio Órgão Especial, para a apreciação da inconstitucionalidade do
artigo 82 da Lei Municipal nº 59.937/2021, bem como dos artigos 41 e 42 da Lei
Jurisprudência - Órgão Especial
Municipal nº 6.155/2017, que disciplinam a obrigatoriedade de transferência de
lotes urbanos à Prefeitura de Jacareí, como contraprestação à regularização do
loteamento, em contrariedade ao disposto na Lei nº 6.766/1979 e no artigo 24,
I, da Carta Magna.
As partes se manifestaram (fls. 259/260 e 256/282) e a Procuradoria Geral
de Justiça opinou pelo acolhimento do presente incidente (fls. 287/299).
É o relatório.
Acolhe-se o presente incidente.
No Acórdão prolatado a fls. 246/252, a Colenda Câmara suscitante assen-
tou que “...A questão diz respeito às condições legais especificadas no art. 82
da Lei Municipal nº 59.937/2021 (Lei de Uso do Solo do Município de Jacareí)
e arts. 41 e 42 da Lei Municipal nº 6.155/2017 (que estabeleceu a estrutura
administrativa, os cargos de provimento em comissão, as competências, as fun-
ções gratificadas da Fundação Pró-Lar de Jacareí), in verbis:
‘Art. 82. Todo loteamento habitacional é obrigado a transferir à
entidade pública municipal responsável pela política habitacional do
Município o percentual de 2% (dois por cento) da área dos lotes ou valor
equivalente conforme previsto na Lei nº 4.796/04, para fins de implanta-
ção de programas habitacionais de interesse social
Art. 41. O Patrimônio da Fundação Pró-Lar de Jacareí é consti-
tuído por:
I – bens imóveis, móveis e direitos;
II – 2% (dois por cento) dos lotes em todo e qualquer loteamento
aprovado no Município.
Art. 42. Fica facultado ao loteador, desde que previamente aprova-
do pela Presidência ou no Plano Local de Habitação de Interesse Social
– PLHIS, cumprir a obrigação de repasse de 2% (dois por cento) dos
lotes previsto no inciso II do art. 41 desta Lei, das seguintes formas:
I – pagamento em pecúnia, em valor equivalente ao dos lotes que
seriam repassados, conforme Laudo de Avaliação Oficial;
II – transferência de lotes de mesmo valor situados em outros lo-
teamentos;
III – repasse de outros imóveis, edificados ou não, de valor equiva-
lente ao dos lotes que seriam transferidos;
IV – entrega de unidades construídas no empreendimento a ser
loteado no valor equivalente ao dos lotes que seriam repassados em pe-
cúnia, conforme Laudo de Avaliação Oficial;
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V – construção de unidades habitacionais de interesse social em
imóvel de propriedade desta Fundação no valor equivalente ao dos lotes
que seriam repassados em pecúnia, conforme Laudo de Avaliação Ofi-
Jurisprudência - Órgão Especial
cial;
VI – realização pelo loteador de obras de infraestrutura, drenagem
e pavimentação em bairro que esta Fundação indicar, no valor equiva-
lente ao dos lotes que seriam repassados em pecúnia, conforme Laudo de
Avaliação Oficial.’
Como se vê, tais normas impõem a destinação de parte de loteamento
para composição do patrimônio do ente público municipal e da Fundação Pró
-Lar de Jacareí como contraprestação à regularização de loteamento.
A concessão da licença está, portanto, condicionada a doação obrigató-
ria de área, a qual, ao que consta, não está vinculada a finalidade urbanística
prevista no plano diretor ou em lei municipal específica para aquela zona (nos
termos do art. 4º, I e para 2º, da Lei nº 6.766/79), em desacordo com referida
lei federal.
A legislação municipal apresenta, em princípio, inconstitucionalidade
sob o aspecto formal, na medida em que amplia os requisitos definidos na Lei de
Parcelamento do Solo Urbano (Lei 9.766/1979), sem observar suas exigências,
mais precisamente no tocante às condições para aprovação de projetos de par-
celamento do solo, o que acaba por avançar sobre a competência concorrente
da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre direito urba-
nístico (art. 24, I, da CF), não se verificando, no caso, especificidade (interesse
local) capaz de justificar eventual competência suplementar da Municipalidade
para tanto (art. 30, I e II, da CF). (...)”
Tendo sido suspenso o processo e determinada a remessa dos autos para
este Órgão Especial, a fim de ser analisada a (in)constitucionalidade do artigo
82 da Lei Municipal nº 59.937/2021, bem como dos artigos 41 e 42 da Lei Mu-
nicipal nº 6.155/2017, ambas do Município de Jacareí.
Embora aos Municípios seja atribuída autonomia para legislar e se au-
toadministrar, somente pode se dar nos limites das Constituições Estadual e
Federal, conforme art. 30, I e II, da Constituição Federal e art. 144, da Consti-
tuição Estadual.
E a Constituição Federal estabelece no art. 24, I, § 1º, que compete à
União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre Direito
Urbanístico, cabendo à União estabelecer as normas gerais.
O Município de Jacareí, como bem apontado pela C. Câmara suscitante e
no parecer da D. Procuradoria Geral de Justiça, desbordou de sua competência
legislativa suplementar (art. 30, I, CF) ao elaborar norma que afronta diretamen-
te a Lei Federal nº 6.766/79 que trata sobre norma geral de Direito Urbanístico
e dispõe sobre o parcelamento do solo urbano.
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Os arts. 4º e 5º, da Lei Federal nº 6.766/79 estabelecem quais os requisi-
tos que os loteamentos deverão atender, não restando disciplinado a destinação
de áreas dominiais, mas sim, de áreas públicas reservadas para a instalação de
equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público.
Jurisprudência - Órgão Especial
Assim, a Municipalidade só poderá exigir em cada loteamento, reserva de
faixa non aedificandi destinada a equipamentos urbanos, como abastecimento
de água, serviços de esgotos, energia elétrica, coletas de águas pluviais, rede te-
lefônica e gás canalizado, nos termos do art. 5º e parágrafo único da Lei Federal
n. 6.766/79.
Sendo assim, não cabe ao Município exigir que 2% da área total do Lo-
teamento empreendido pela Norsul Empreendimentos e Administração Ltda
seja destinada para o interesse social, o que extrapola a competência legislativa
suplementar, eis que a reserva de 2% dos lotes para serem afetados ao uso domi-
nical destinados para “área de interesse social” não se confunde com reserva de
áreas non edificandi destinada a equipamentos urbanos.
O Município de Jacareí impôs, ainda, a transferência de bens (a título de
doação) como condição para aprovação do loteamento, afrontando ao disposto
no art. 5º, XXII e XXIV, da Constituição Federal, que protege o direito de pro-
priedade e se revela como verdadeiro confisco da propriedade privada, vez que
não há previsão de justa e prévia indenização na legislação municipal.
A transferência compulsória de domínio deve se dar mediante desapro-
priação, nos termos do art. 182, §§ 2º, 3º e 4º, III, da Constituição Federal. O
confisco, portanto, é repelido pela Carta Magna como forma de garantia do di-
reito de propriedade. Sua perda, por ato da Administração, deve se dar mediante
a desapropriação para não se recair em injusta apropriação municipal.
E embora qualificada como doação, o certo é que não se verifica as ca-
racterísticas desse ato jurídico como previsto no Código Civil, “em que uma
pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o
de outra” (art. 538). Ausente o animus donandi, qual seja, a vontade de efetuar
liberalidade.
Na espécie, não há manifestação válida na vontade de praticar liberalida-
de porque a doação de 2% da gleba loteada do Loteamento empreendido pela
Norsul Empreendimentos e Administração Ltda é cogentemente imposta como
condição para aprovação de loteamento.
Veja-se os seguintes precedentes deste C. Órgão Especial:
“INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. Art. 215, inciso IV,
da LCM nº 355/2006 do Município de Catanduva, que ‘Institui o Plano Diretor
Participativo, a Lei de Uso e Ocupação do Solo e a Lei de Parcelamento do
Solo do Município de Catanduva e dá outras providências’. Dispositivo que
condiciona a aprovação de loteamento à doação de 5% da área total do em-
preendimento a título de ‘áreas de habitação de interesse social’. Ampliação das
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restrições constantes da legislação nacional em desbordamento da competên-
cia do Município para legislar sobre assuntos locais, além de ferir o direito de
propriedade previsto no artigo 5º, XXII da Carta da República, de observância
Jurisprudência - Órgão Especial
obrigatória dos Municípios consoante artigo 144 de Constituição Bandeirante.
Inconstitucionalidade. Precedentes. Incidente conhecido e acolhido.” (IAI nº
0035654-82.2022.8.26.0000, Rel. Des. Xavier de Aquino, j. 09/08/2023).
“ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE – Município de
Olímpia – Parcelamento, uso e ocupação do solo urbano – Inciso IV do artigo
16 da Lei Municipal de Olímpia nº 3.310/2008, alterada pela Lei Municipal nº
3.384/2009 – Destinação, no mínimo, de 2% da área total de um projeto de par-
celamento para áreas dominiais – Incompatibilidade com os arts. 5º, caput, XXII
e XXIV, 22, II, e 24, I, da CF/88. 1. Usurpação de competência. Ocorrência.
Competência da União para legislar sobre normas gerais de direito urbanístico e
do Município apenas para suplementar, no que couber, a legislação federal, art.
24, I, § 1º da CF/88. 2. Doação de percentual para compor áreas dominiais. Per-
da da propriedade particular. Inadmissibilidade. Inexistência de prévia e justa
indenização. Confisco de propriedade privada. Violação ao art. 5º, XXI e XXIV,
da CF/88. 3. Inconstitucionalidade reconhecida. Arguição procedente.” (IAI nº
0028396-55.2021.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Bueno, j. 15/09/2021).
“Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade. Direito Urbanístico. In-
constitucionalidade do art. 47, IV e Anexo IX, da Lei nº 1967/13 (Plano Dire-
tor), do Município de Penápolis. Destinação para área dominial de 2% da área
total da gleba loteada como ‘área de interesse social’ a título de doação para o
Município. Invasão de competência. Competência privativa da União para le-
gislar sobre normas gerais de Direito Urbanístico e suplementar do Município
nos termos do art. 24, I, § 1º da CF. Doação de percentual de lotes particulares
para compor áreas dominiais. Inadmissibilidade. Confisco da propriedade priva-
da. Perda da propriedade particular sem prévia e justa indenização. Violação ao
art. 5º, XXII e XXIV, da CF. Precedentes deste Órgão Especial. Inconstituciona-
lidade reconhecida. Incidente acolhido, com determinação.” (IAI nº 0002867-29.2024.8.26.0000, Rel. Des. Damião Cogan, j. 26/06/2024).
Em resumo, os atos normativos em exame violam os arts. 24, I, 30, I e II,
182, §§ 2º, 3º e 4º, III, da Constituição Federal.
Assim, é caso de acolhimento do presente incidente.
Pelo exposto, acolhe-se o presente incidente de arguição de inconstitu-
cionalidade, para declarar a inconstitucionalidade art. 82 da Lei Municipal nº
59.937/2021 e dos arts. 41 e 42 da Lei Municipal nº 6.155/2017, ambos do Mu-
nicípio de Jacareí, nos termos acima explicitados e determino a devolução dos
autos à e. Câmara suscitante para julgamento dos autos principais.