Decisão 1000080-84.2020.8.26.0150

Processo: 1000080-84.2020.8.26.0150

Recurso: Apelação

Relator: Ricardo Feitosa; Órgão Julgador: 4ª Câmara

Câmara julgadora:

Data do julgamento: 18 de abril de 2025

Ementa Técnica

APELAçãO – REEXAME NECESSÁRIO – Artigo 496, I, do Código de Processo Civil. PRELIMINARES – Inépcia da petição inicial e ilegi- timidade passiva – Afastamento. APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ORDINÁRIA – Pa- ciente portador de epilepsia de difícil controle – Ne- cessidade de medicamento – Hipossuficiência para o custeio – Assistência integral à saúde – Dever do Es- tado – Imposição da Constituição Federal e Estadual e entendimento da Lei Federal nº 8.080/90 – Medi- camento padronizado – Inaplicabilidade do Tema nº 106/STJ e dos Temas nºs 6 e 1234 do STF – Sentença procedente – Manutenção da sentença – Reexame ne- cessário e recurso do Município de Cosmópolis des- providos.(TJSP; Processo nº 1000080-84.2020.8.26.0150; Recurso: Apelação; Relator: Ricardo Feitosa; Órgão Julgador: 4ª Câmara; Data do Julgamento: 18 de abril de 2025)

Voto / Fundamentação

, em sessão permanente e virtual da 12ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Ne- garam provimento aos recursos. V.U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. (Voto nº 40.996) O julgamento teve a participação dos Desembargadores EDSON FER- REIRA (Presidente) e J. M. RIBEIRO DE PAULA. São Paulo, 18 de abril de 2025. OSVALDO DE OLIVEIRA, Relator


Ementa: REEXAME NECESSÁRIO – Artigo 496, I, do Código de Processo Civil. PRELIMINARES – Inépcia da petição inicial e ilegi- timidade passiva – Afastamento. APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ORDINÁRIA – Pa- ciente portador de epilepsia de difícil controle – Ne- cessidade de medicamento – Hipossuficiência para o custeio – Assistência integral à saúde – Dever do Es- tado – Imposição da Constituição Federal e Estadual e entendimento da Lei Federal nº 8.080/90 – Medi- camento padronizado – Inaplicabilidade do Tema nº 106/STJ e dos Temas nºs 6 e 1234 do STF – Sentença procedente – Manutenção da sentença – Reexame ne- cessário e recurso do Município de Cosmópolis des- providos.





VOTO

Trata-se de ação ordinária com pedido de antecipação de tutela ajuizada por Flávio Luiz de Queiroz em face do Município de Cosmópolis e do Estado de São Paulo, na qual alega ser portador de epilepsia de difícil controle, razão pela qual necessita do medicamento Levetiracetam 750 mg. Entretanto, não possui condições financeiras para adquiri-lo por conta própria. Requer, inclusive em sede de antecipação da tutela, o fornecimento da aludida substância. Requer 424 ainda, o benefício da gratuidade da justiça. A r. sentença (fls. 85/89), cujo relatório se adota, julgou procedente o pe- dido, para, confirmando a liminar, condenar a parte ré a fornecer à parte autora o medicamento Levetiracetam 750 mg, conforme o laudo médico, de forma Jurisprudência - Direito Público solidária, na quantidade indicada pelo profissional que acompanha o autor, no prazo de 15 dias, devendo a receita médica ser renovada a cada 90 (noventa) dias, na via administrativa, sob pena de cessação da obrigação da Administração em continuar a disponibilizar o medicamento. O Município apelou (fls. 96/107), alegando, preliminarmente, inépcia da petição inicial. Aduz ainda que a responsabilidade pelo fornecimento do medi- camento é do Estado. No mérito, sustenta que não foram preenchidos os requi- sitos fixados no julgamento do tem 106/STJ. Subsidiariamente, requer o forne- cimento do fármaco sem a obrigatoriedade de marca específica. Os princípios da separação dos poderes, da razoabilidade e proporcionalidade, da lei orçamentá- ria, da isonomia e da reserva do possível devem ser observados. Não foram apresentadas contrarrazões (fls. 111). É o relatório. Inicialmente, cumpre obtemperar que incide hipótese de reexame neces- sário, conforme artigo 496, inciso I, do Código de Processo Civil. Cumpre também, afastar a preliminar de inépcia da petição inicial, pois esta cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 319, do Código de Processo Civil. A exordial reúne as exigências do referido artigo, notadamente os funda- mentos de fato e de direito, possibilitando ao réu, sua defesa. Quanto à responsabilidade pelo fornecimento do medicamento, é cediço que as normas constitucionais que tratam da assistência à saúde da população imputam aos três entes federativos, União, Estados e Municípios, isolada ou conjuntamente, a obrigação de garantir a assistência integral à saúde da popu- lação (artigos 23, II, 196 e 198, § 1º da Constituição Federal e artigo 219 da Constituição Estadual). Portanto, a saúde é um dever do Estado e um direito do cidadão. O vocá- bulo “Estado” deve ser interpretado em seu sentido amplo, qual seja, todos os entes políticos da federação, razão porque não há se falar em ilegitimidade de um ou outro. Trata-se de obrigação solidária, que pode ser cumprida por apenas um deles. Nesse sentido a jurisprudência já sedimentada pelo E. Superior Tribunal de Justiça (AgRg no Ag 961677/SC, Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, DJe 11.06.2008) e por esta Corte, através da edição do Enunciado de Direito Público nº 16, o qual prevê que “a ação para fornecimento de medicamentos e afins pode ser proposta em face de qualquer pessoa jurídica de direito público interno”. Assim, perfeitamente cabível o pleito em face do Município de Cosmó- polis e do Estado de São Paulo ou apenas em face de um deles. No mais, impende consignar que o medicamento está incorporado no Sistema Único de Saúde, conforme informado pela Fazenda do Estado de São Paulo às fls. 36/37, sendo, portanto, inaplicável ao presente caso, os Temas nº 106 do Superior Tribunal de Justiça e nºs 6 e 1234 do Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência - Direito Público Superada a matéria preliminar, passa-se ao mérito. Pois bem, dispõe o artigo 196 da Constituição Federal que a saúde é direi- to de todos e dever do Estado. Deve, nestas condições, ser assegurada pelo Po- der Público, razão pela qual incabível a negativa de fornecimento da substância essencial que foi prescrita ao autor. Este dispositivo constitucional configura norma de eficácia imediata e assegura a todo cidadão o direito à saúde, como dever do Estado, independente- mente de edição de qualquer ato normativo inferior para legitimar a observância ao direito subjetivo material custodiado. Ora, se a saúde constitui, de um lado, direito público subjetivo do cidadão e, de outro, dever do Estado, é inadmissível que o Poder Público crie obstáculos ao fornecimento do medicamento do qual necessita o apelado, sob o argumento de afronta ao princípio da isonomia. Ao Estado – expressão empregada em sentido lato compete a assistência à saúde, bem como adotar as providências cabíveis para amparar os necessita- dos. Ora, se o Poder Público faltar com a sua obrigação, dá ao cidadão o inar- redável direito de buscar socorro perante o Poder Judiciário, do qual nenhuma lesão a qualquer direito pode ser excluída de apreciação. Também não há que se cogitar em invasão de matéria de competência do Poder Executivo, porquanto o apelado pretende tão-somente o cumprimento do dever constitucional do Estado de preservar e recuperar a saúde dos indivíduos (artigo 196 da Constituição Federal). Nesta esteira, deve fornecer os medica- mentos adequados àquele que não possui condições financeiras para adquiri-los. Vale ainda ressaltar que não cabe ao Judiciário analisar se os medicamen- tos prescritos são ou não eficazes, ou se existem outros que os substituam, pois tal responsabilidade é atribuição exclusiva dos médicos. Estando a medicação devidamente prescrita, não pode o médico restringir seu procedimento científico à frieza da burocracia de um protocolo. A necessidade do medicamento solicitado está comprovada pelos relató- rios de fls. 17/19 que instruem a presente ação. A propósito, os profissionais da área de saúde subscrevem atestados sob as penas da lei, ou seja, estão sujeitos às sanções previstas no artigo 302 do Có- digo Penal, em caso de falsidade. Suficiente, portanto, a palavra do profissional. O Poder Público pode dispor de recursos financeiros para gerenciar tais situações de crise, havendo, sim, meios viáveis para se adquirir a medicação ora pleiteada, em prol da saúde, interesse público que deve ser cuidado pelos administradores. 426 E ainda, é infundada a tese de que o Poder Judiciário tem atuado como co-gestor dos recursos destinados à saúde pública. O acolhimento da pretensão ora deduzida em juízo apenas torna efetivo o direito de integral assistência à saúde. Essa atribuição não se confunde, em absoluto, com o poder-dever da Jurisprudência - Direito Público Administração Pública de gerir as verbas ou recursos de determinada área ou, ainda, de estabelecer suas prioridades de atuação, tampouco viola o princípio constitucional da separação dos poderes. Acerca da matéria, já se posicionou a jurisprudência: AÇÃO MOVIDA CONTRA A MUNICIPALIDADE DE SANTANA DE PARNAÍBA VISANDO O FORNECIMENTO DE MEDICAMEN- TO PARA TRATAMENTO DE ADENOCARCINOMA DE PRÓSTATA – OBRIGAÇÃO DO ENTE PÚBLICO, DECORRENTE DO DISPOS- TO NO ART. 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – AÇÃO PROCE- DENTE – SENTENÇA CONFIRMADA. (Apelação Cível 1001988-04.2023.8.26.0529; Relator: Ricardo Feitosa; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Foro de Santana de Parnaíba - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/06/2024; Data de Registro: 18/06/2024) APELAÇÃO – OBRIGAÇÃO DE FAZER – SAÚDE – MEDICAMEN- TO PARA TRATAMENTO INDIVIDUAL – DEVER DE FORNECI- MENTO PELO PODER PÚBLICO (ART. 196, CF/1988) – Fornecimen- to de medicamento para tratamento individual – Dever de fornecimento, em face do que dispõe o art. 196 da Constituição Federal – Preenchidos todos os requisitos definidos no Tema 106/STJ (REsp 1.657.156/RJ) – Comprovação de imprescindibilidade do tratamento, de hipossuficiência econômica e registro do medicamento na ANVISA – Ação julgada par- cialmente procedente – Sentença mantida – Recurso da FESP desprovi- do. (Apelação Cível 1040965-43.2020.8.26.0053; Relator: Ponte Neto; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Público; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 13ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 13/06/2024; Data de Registro: 13/06/2024) Obrigação de fazer. Fornecimento de medicamento. Direito à saúde ga- rantido pela Constituição Federal (arts. 196 e 198). Dever dos compo- nentes do Estado Federal de prover as condições indispensáveis ao pleno exercício desse direito, inclusive com fornecimento de medicamento. Re- curso desprovido. (Apelação Cível 1009555-33.2023.8.26.0482; Relator: Borelli Thomaz; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Público; Foro de Presidente Prudente - Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 04/06/2024; Data de Registro: 04/06/2024) APELAÇÃO – Ação de procedimento comum – Saúde – Medicamento – Pretensão à modificação do critério de arbitramento da verba honorária – Equidade – Possibilidade – Precedente do E. Superior Tribunal de Justi- 426 ça – Sentença mantida – Recurso desprovido. (Apelação Cível 1001081-73.2023.8.26.0482; Relator: Renato Delbianco; Órgão Julgador: 2ª Câ- mara de Direito Público; Foro de Presidente Prudente - Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 29/05/2024; Data de Registro: 29/05/2024) Jurisprudência - Direito Público Por fim, quando ao fornecimento do medicamento sem vinculação à mar- ca comercial, nada a deliberar, tendo em vista que a MM. Juíza a quo determi- nou seu fornecimento pelo princípio ativo. Desta feita, restou demonstrado nos autos que o autor necessita do medi- camento indicado na inicial, devidamente prescrito (fls. 17/19), não obtido na rede pública (fls. 20), de custo incompatível com a sua condição financeira (fls. 22). Nesse contexto, o acolhimento do pedido inicial quanto ao fornecimento do medicamento era mesmo de rigor, de modo que a r. sentença deve ser man- tida em sua íntegra. À vista do exposto, nega-se provimento ao recurso do Município de Cosmópolis e ao reexame necessário.