Decisão 1002562-47.2023.8.26.0587

Processo: 1002562-47.2023.8.26.0587

Recurso: Apelação

Relator: FERMINO MAGNANI FILHO

Câmara julgadora: Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de

Data do julgamento: 26 de maio de 2025

Ementa Técnica

APELAçãO – ILEGITIMIDADE PASSIVA – Verificação da pertinência subjetiva para figurar no polo passivo da demanda – Competências materiais comuns para implementação de políticas públicas sobre proteção do meio ambiente, promoção de programas de cons- trução de moradias e a melhoria de condições habita- cionais e saneamento básico e proteção do patrimônio público – Preliminar afastada. CHAMAMENTO AO PROCESSO – Competência federal voltada a elaboração de normas jurídicas di- retrizes, normas jurídicas e coordenação da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – ‘Indeferida a inclusão da União. AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Implementação de me- didas para prevenção, mitigação, monitoramento e fiscalização de áreas de risco ocupadas no bairro de Toque-Toque Pequeno, bem como condenação em da- nos morais coletivos – Harmonização entre os Pode- res que enseja a aplicação do sistema de freios e con- trapesos (checks and balances) – Atuação do Poder Judiciário em situações excepcionais legitimada pelo Supremo Tribunal Federal – Reserva do possível não pode ser pretexto ao júbilo da inércia dos administra- dores públicos – Federalismo cooperativo – Necessá- ria atuação conjunta entre ente estadual e municipal – Danos morais coletivos não configurados – Três ape- lações não providas. 447(TJSP; Processo nº 1002562-47.2023.8.26.0587; Recurso: Apelação; Relator: FERMINO MAGNANI FILHO; Data do Julgamento: 26 de maio de 2025)

Voto / Fundamentação

, em 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento aos recursos. V.U. Jurisprudência - Direito Público Sustentou oralmente o advogado Plinio Back Silva.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. (Voto nº 34.398) O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores MARIA LAURA TAVARES (Presidente sem voto), FRANCISCO BIANCO e NO- GUEIRA DIEFENTHALER. São Paulo, 26 de maio de 2025. FERMINO MAGNANI FILHO, Relator


Ementa: ILEGITIMIDADE PASSIVA – Verificação da pertinência subjetiva para figurar no polo passivo da demanda – Competências materiais comuns para implementação de políticas públicas sobre proteção do meio ambiente, promoção de programas de cons- trução de moradias e a melhoria de condições habita- cionais e saneamento básico e proteção do patrimônio público – Preliminar afastada. CHAMAMENTO AO PROCESSO – Competência federal voltada a elaboração de normas jurídicas di- retrizes, normas jurídicas e coordenação da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – ‘Indeferida a inclusão da União. AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Implementação de me- didas para prevenção, mitigação, monitoramento e fiscalização de áreas de risco ocupadas no bairro de Toque-Toque Pequeno, bem como condenação em da- nos morais coletivos – Harmonização entre os Pode- res que enseja a aplicação do sistema de freios e con- trapesos (checks and balances) – Atuação do Poder Judiciário em situações excepcionais legitimada pelo Supremo Tribunal Federal – Reserva do possível não pode ser pretexto ao júbilo da inércia dos administra- dores públicos – Federalismo cooperativo – Necessá- ria atuação conjunta entre ente estadual e municipal – Danos morais coletivos não configurados – Três ape- lações não providas. 447





VOTO

Vistos. Apelações interpostas pelo Ministério Público Paulista, pela Fazenda Paulista e pelo Município de São Sebastião contra r. sentença do digno Juízo da Jurisprudência - Direito Público 2ª Vara Cível da Comarca de São Sebastião (fls 3748/3762, integrada a fls 3817), que julgou parcialmente procedente ação civil pública, cujo objeto consistia na adoção de medidas para prevenção, mitigação, monitoramento e fiscalização de áreas de risco ocupadas no bairro de Toque-Toque Pequeno, e condenação em danos coletivos. Eis a síntese das teses recursais do Ministério Público Paulista: a) responsabilidade objetiva estatal; b) competia ao Poder Público o dever específico na adoção de medidas voltadas à prevenção, mitigação, preparação e resposta aos riscos no local; c) essa omissão afetou gravemente a qualidade de vida, saúde e segurança de toda a comunidade local; d) danos morais coletivos configurados (fls 3772/3784). Segue o apelo da Fazenda Paulista nestes termos: a) sua ilegitimidade passiva; b) o Plano Municipal de Redução dos Riscos é instrumento da política de desenvolvimento urbano da Municipalidade; c) integração da União à lide; d) impossibilidade de intervenção do Estado no Município; e) tem-se a construção pela CDHU de 704 unidades habitacionais; f) obrigações subsidiárias geram insegurança e incerteza sobre atuação do Estado (fls 3827/3852). Já o apelo do Município de São Sebastião traz os seguintes pontos: a) integração da União a lide; b) a discussão que não envolve apenas políticas pú- blicas da defesa civil, mas também Políticas de Meio Ambiente e de Mudanças Climáticas; c) Município não tem condições de executar a referida política sem o apoio das esferas Estadual e Nacional; d) responsabilidade solidária com o Estado Paulista na execução da política nacional; e) atuação restrita do Poder Judiciário quanto à realização de políticas públicas (fls 3861/3953) Recursos respondidos (fls 3956/3966 e 4258/4269). Manifestou-se a Procuradoria da Justiça pelo provimento do recurso do Ministério Público, bem como não provimento aos recursos da Fazenda Paulista e do Município de São Sebastião (fls 4339/4356). É o relatório. 1- Ministério Público Paulista acionou a Fazenda Paulista e o Município de São Sebastião com o fim de impor obrigação de fazer, consistente em pro- videnciar, nos setores SSB-10-01-SM e SSB-10-02-SM (movimentos de massa), do bairro Toque-Toque Pequeno, a adoção das medidas apontadas pelo IPT em 2018, em especial garantindo a (a) atualização do mapeamento de riscos (com a adoção de todas as medidas estruturantes e não estruturantes que se façam adequadas à nova classificação eventualmente alcançada); (b) apresentação de cronograma de ações de fiscalização e controle da ocupação das áreas de risco; 448 (c) criação de Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil - NUPDEC na região; (d) elaboração das cartas periódicas anuais de suscetibilidade a movi- mentos gravitacionais de massa e inundações e geotécnica de aptidão à urbani- zação de todo o bairro; e (e) o monitoramento constante da ocupação da área, Jurisprudência - Direito Público tanto nas reformas como na ampliação das moradias existentes, durante o ano todo e com maior recorrência durante o período chuvoso, principalmente após chuvas fortes e/ou intensas, bem como no setor SSB-10-03-SM (inundação), do mesmo bairro, o monitoramento das condições meteorológicas e a avaliação periódica do avanço da ocupação da planície de inundação do curso d’água, evitando que novas moradias sejam construídas muito próximas da linha de drenagem, além da limpeza periódica das valas e canais de drenagem, tudo conforme o cronograma a ser apresentado pelo Poder Público (fls 44). Pede também a condenação em danos coletivos. Queixa-se o autor que, mesmo após a tragédia climática ocorrida em fe- vereiro de 2023, com graves inundações e desbarrancamentos no perímetro do Município de São Sebastião, as autoridades públicas relutam em adotar medidas concretas para evitar a repetição desse triste episódio. Ação jugada parcialmente procedente, bem resolvida. 2- Rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam da Fazenda Paulista. Como pontua Cândido Rangel Dinamarco, sempre que a procedência de uma demanda seja apta a melhorar o patrimônio ou a vida do autor, ele será parte legítima; sempre que ela for apta a atuar sobre a vida ou o patrimônio do réu, também esse será parte legítima. Daí conceituar-se essa condição da ação como relação de legítima adequação entre o sujeito e a causa (Instituições de Direito Processual Civil, volume II, 6ª edição, página 313, item 545, Malheiros, 2009). E mais: a legitimidade ad causam revela a pertinência subjetiva do de- mandante ou do demandado. Depende sempre de uma necessária relação entre o sujeito e a causa e traduz-se na relevância que o resultado desta virá a ter sobre sua esfera de direitos, seja para favorecê-la ou para restringi-la (obra supra, página 313). A Constituição Federal estabeleceu competências materiais comuns para implementação de políticas públicas. E aqui destaca-se a proteção do meio ambiente, promoção de programas de construção de moradias e a melhoria de condições habitacionais e saneamento básico e proteção do patrimônio público (artigo 23, incisos I, VI, IX, da Constituição Federal). A Constituição Paulista também tratou do assunto no artigo 180 dispondo sobre o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, o bem-estar dos seus moradores e restringir a utilização de áreas de riscos geológicos: Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao de- senvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão: I - o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes; II - a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, en- Jurisprudência - Direito Público caminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes; III - a preservação, proteção e recuperação do meio ambiente urbano e cultural; IV - a criação e manutenção de áreas de especial interesse histórico, urbanístico, ambiental, turístico e de utilização pública; V - a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qua- lidade de vida; VI - a restrição à utilização de áreas de riscos geológicos; Mais especificamente, a Lei Federal nº 12.608/2012, que institui a Políti- ca Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC, determina: Art. 7º - Compete aos Estados: I - executar a PNPDEC em seu âmbito territorial; II - coordenar as ações do SINPDEC em articulação com a União e os Municípios; III - instituir o Plano Estadual de Proteção e Defesa Civil; IV - identificar e mapear as áreas de risco e realizar estudos de identifi- cação de ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades, em articulação com a União e os Municípios; V - realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, em articulação com a União e os Municípios; VI - apoiar a União, quando solicitado, no reconhecimento de situação de emergência e estado de calamidade pública; VII - declarar, quando for o caso, estado de calamidade pública ou situa- ção de emergência; e VIII - apoiar, sempre que necessário, os Municípios no levantamento das áreas de risco, na elaboração dos Planos de Contingência de Proteção e Defesa Civil e na divulgação de protocolos de prevenção e alerta e de ações emergen- ciais. Parágrafo único - O Plano Estadual de Proteção e Defesa Civil conterá, no mínimo: Logo, não há dúvida de que o Estado de São Paulo tem sim legitimidade para figurar no polo passivo da ação, pois é corresponsável pela implementação das medidas necessárias à redução dos riscos ambientais e urbanísticos consta- tados na zona discriminada na petição inicial. 3- Indefiro o chamamento ao processo da União em razão das suas com- petências serem direcionadas a elaboração de diretrizes, normas jurídicas e 450 coordenação da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, cabendo aos Esta- dos e aos Municípios a efetiva concretização das medidas. Vale o artigo 6º da Lei nº 12.608/2012: Art. 6º - Compete à União: Jurisprudência - Direito Público I - expedir normas para implementação e execução da PNP-DEC; II - coordenar o SINPDEC, em articulação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; III - promover estudos referentes às causas e possibilidades de ocorrên- cia de desastres de qualquer origem, sua incidência, extensão e consequência; IV - apoiar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios no mapeamen- to das áreas de risco, nos estudos de identificação de ameaças, suscetibilidades, vulnerabilidades e risco de desastre e nas demais ações de prevenção, mitiga- ção, preparação, resposta e recuperação; V - instituir e manter sistema de informações e monitoramento de desas- tres; VI - instituir e manter cadastro nacional de municípios com áreas susce- tíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos; VII - instituir e manter sistema para declaração e reconhecimento de situação de emergência ou de estado de calamidade pública; VIII - instituir o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil; IX - realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, bem como dos riscos biológicos, nucleares e químicos, e pro- duzir alertas sobre a possibilidade de ocorrência de desastres, em articulação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; X - estabelecer critérios e condições para a declaração e o reconheci- mento de situações de emergência e estado de calamidade pública; XI - incentivar a instalação de centros universitários de ensino e pesquisa sobre desastres e de núcleos multidisciplinares de ensino permanente e a distân- cia, destinados à pesquisa, extensão e capacitação de recursos humanos, com vistas no gerenciamento e na execução de atividades de proteção e defesa civil; XII - fomentar a pesquisa sobre os eventos deflagradores de desastres; e XIII - apoiar a comunidade docente no desenvolvimento de material di- dático-pedagógico relacionado ao desenvolvimento da cultura de prevenção de desastres. XIV - realizar repasse adicional de recursos a Estados e a Municípios com reconhecimento de estado de calamidade pública ou situação de emergên- cia, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), para assistência prioritária e continuada à saúde física e mental de pessoas atingidas por desastres, nos termos do inciso VII do caput do art. 9º desta Lei. Ademais, faculta-se ao demandante a composição do polo passivo e as obrigações requeridas estão inseridas no rol de responsabilidades executivas atribuídas ao ente estadual e municipal. 4- Ao mérito: Não se há de aguardar novos incidentes, inundações, deslizamentos de Jurisprudência - Direito Público encostas etc, calculando-se pela média o índice pluviométrico, quando já é con- sabida a recorrência dessa espécie de eventos que impõem o sofrimento das po- pulações cujas moradias se encontram em áreas de risco, a cada ano resultando em desastres ampliados pela omissão das Administrações Quantas ações judiciais já foram demandas para pressionar o Poder Exe- cutivo Estadual e Municipal para que se organizem e cumpram com seu dever. Rejeito o argumento de pretensa violação ao princípio da separação de poderes. Vale colacionar os ensinamentos de Luiz Manuel Fonseca Pires: Sob os aspectos fáticos, diz-se que não há como o Judiciário exigir a im- plementação de políticas públicas porque há limites materiais aos recursos do Estado: a falta de dinheiro, a carência do número suficiente de profissionais nos quadros da Administração Pública, a ausência de equipamentos são realidades notórias que não devem ser desprezadas. Todavia, entendemos que esta constatação não pode restringir-se à lei- tura simplista e estreita do que os olhos conseguem enxergar. Em contraste com este discurso titubeante da Administração Pública toda vez que demanda- da judicialmente, também devemos considerar que há atividades concretas – e igualmente notórias – de empenho de quantas exorbitantes de recursos públi- cos – financeiros, de pessoal e de material – em campanhas de propaganda das realizações do governo, em projetos cujos bens almejados (festas populares, monumentos etc) são de discutível prioridade em relação aos valores preteridos (saúde, educação, segurança pública e outros). Enfim, há diversas situações em que é possível cotejar os discursos de largas lamentações que são formulados pela Administração Pública em sua defesa nas ações judiciais com dispêndio de vultosas quantias com outras atividades que não se justificam como máxima prioridade de um Estado social. Quanto aos aspectos jurídicos, um dos limites que se pretende impor ao controle judicial é o de que os gastos públicos dependem de prévia disposição orçamentária. De fato, o orçamento público deve ser previsto em leis – plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais (art. 165 e seguintes da Constituição Federal) –, no entanto, como anota Ana Paula de Barcellos, estes orçamentos limitam-se a aprovar “apenas uma verba geral para despe- sas, sem especificação; outros veiculam uma listagem genérica de temas, sem que seja possível identificar minimamente quais as políticas públicas que se deseja implementar”. Não há amarras à Administração Pública com rubricas detalhadas e minimamente precisas sobre o emprego do dinheiro público, o que representa, inclusive, a espargida liberdade discricionária de que goza o 452 Executivo na escolha das políticas públicas e respectiva definição de meios [...] Por isso, diante da pluralidade de opções padece o argumento que pretende afastar o controle judicial com fundamento na legislação orçamentária como se à Administração fosse conferida apenas uma única opção de ação, como se Jurisprudência - Direito Público fosse uma competência vinculada. Por conseguinte, tanto é possível, como de- fende Américo Bedê Freire Júnior, admitir a intervenção judicial a determinar a inclusão no orçamento do ano seguinte de determinada verba vinculada a certo programa político priorizado pela ordem constitucional, como também determinar, imediatamente, a concessão de remédio ou cirurgia [...]. Outro limite sob o aspecto jurídico seria a teoria da separação dos po- deres. Com a singela invocação deste dogma pretende-se que não seja possível admitir que o Judiciário determine as ações do Executivo. No entanto, como vimos anteriormente (2.2), a teoria da separação dos poderes ao longo dos séculos nunca se apresentou, tanto em sua proposição filosófica quanto em sua positivação jurídica, com um caráter absoluto [...] Em suma, a divisão das funções e a distribuição destas aos diferentes ór- gãos nunca foi absoluta e estanque, e mesmo ao se partir da realidade positiva do nosso sistema jurídico, a independência dos Poderes reclama, em igual pas- so, a harmonia entre si (art. 2º da Constituição Federal), o que caracteriza, nos moldes delineados pela ordem constitucional, a realização do chamado sistema de “freios e contrapesos” – isto é, e em análise do presente tema, a indiscutível possibilidade, o dever, de o Judiciário intervir para recompor a ordem jurídica toda vez que esta for violada por ação ou omissão do Executivo. Um terceiro aspecto jurídico que se brande em suposta limitação ao con- trole judicial é a ideia de que enquanto os Poderes Executivo e Legislativo são compostos por representantes do povo, pessoas eleitas pela sociedade, o Judiciário não goza da mesma característica em sua formação. Todavia, como acentua Américo Bedê Freire Júnior, este “caráter contramajoritário” não se justifica simplesmente porque decorre da própria Constituição a legitimidade do Judiciário [...]. Ao invertermos a ótica – porque partimos da legitimidade e do papel constitucional do Judiciário –, encontramos a conclusão de que o controle judi- cial assegura, isto sim, o direito das minorias, o direito subjetivo de cada admi- nistrado individualmente desrespeitado pelo próprio Estado (Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa - Dos Conceitos Jurídicos Indeterminados às Políticas Públicas, páginas 288/292, Elsevier, 2008). Também o Supremo Tribunal Federal legitima a possibilidade de atuação jurisdicional quando o Poder Público descumpre os mandamentos constitucio- nais para implementação de políticas públicas no Tema nº 698, RE nº 684612: 1- A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. 2- A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado. 3- No caso de servi- Jurisprudência - Direito Público ços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP). Direito à saúde, à moradia digna, ao meio ambiente ecologicamente equi- librado sempre são pautas obrigatórias nos discursos e promessas das autorida- des, constituindo fala de palanque reiterada, a ponto de praticamente esvaziar-se e contornar-se de tonalidade demagoga sem seriedade e firmeza com as palavras ditas. Décadas e décadas, aliás, são mais do que suficientes para que a imple- mentação de uma política pública se realize e saia do papel para beneficiar os cidadãos e o meio ambiente. Não se trata de mágica, mas sim conduta proba e ética, paradigma que deve informar todos os mandatos, a postura da Adminis- tração como um todo, não se admitindo a postergação indefinida das ações e programas para as vésperas de novas eleições, como se vê a larga. A propalada reserva do possível não pode servir de pretexto ao júbilo da inércia dos administradores púbicos. Assim como a discricionariedade é margem de liberdade, mas não pode servir como esquivança para tomada de decisões, a Moral serve também como parâmetro para a discricionariedade de alguns atos. De fato, a discricionariedade administrativa, da mesma forma que é limitada pelo Direito, também o é pela moral; entre as várias soluções legais admissíveis, a Administração Pública tem que optar por aquela que assegure o “mínimo ético” da instituição (Maria Sylvia Zanella di Pietro - Discriciona- riedade Administrativa na Constituição de 1988, 2ª edição, página 162, Atlas, 2007). Nem há que se falar em indevida intervenção do Estado no Município, pois o que busca é uma atuação conjunta para propiciar de modo mais eficaz o controle e monitoramento dos riscos de ocupações em áreas suscetíveis de inundação e movimentação. As obrigações do Estado e do Município não são estanques e dissociadas, mas integradas. Descabido o argumento fazendário de insegurança sobre a sub- sidiariedade das obrigações. Vale aqui o federalismo cooperativo. A Lei Paulista nº 1.166/2012 estabelece funções de interesse comum do Estado e dos Município da Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte: Artigo 12 - O Conselho de Desenvolvimento especificará as funções pú- blicas de interesse comum ao Estado e aos Municípios da Região Metropolitana 454 do Vale do Paraíba e Litoral Norte, dentre os seguintes campos funcionais: I - planejamento e uso do solo; II - transporte e sistema viário regional; III - habitação; Jurisprudência - Direito Público IV - saneamento ambiental; V - meio ambiente; VI - desenvolvimento econômico; VII - atendimento social; VIII - esportes, lazer e cultura; IX - turismo; X - agricultura e agronegócio (...) § 3º - Para os efeitos desta lei complementar, os campos funcionais indicados nos incisos V, VI e VII deste artigo compreenderão as funções de saúde, educação, planejamento integrado da segurança pública, recursos hídricos, defesa civil e serviços públicos em regime de concessão ou prestados diretamente pelo Poder Público, sem prejuízo de outras funções a serem especificadas pelo Conselho de Desenvolvimento. 5- Não há o que se falar em danos morais coletivos. Configura-se a responsabilidade civil objetiva do Estado pela existência de nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano. Presentes estes três elementos, de rigor a indenização, sendo prescindível a análise da culpa. Este raciocínio encontra substrato na Carta Política, cujo artigo 37, § 6º, é explícito: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado pres- tadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o res- ponsável nos casos de dolo ou culpa. Pela teoria do risco administrativo, a obrigação de indenizar advém do mero ato lesivo e injusto dispensado à vítima. Conforme leciona José dos San- tos Carvalho Filho que a marca característica da responsabilidade objetiva é a desnecessidade de o lesado pela conduta estatal provar a existência da culpa do agente ou do serviço. [...] Para configurar-se esse tipo de responsabilidade, bastam três pressupostos. O primeiro deles é a ocorrência do fato administrati- vo, assim considerado como qualquer forma de conduta, comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída ao Poder Público. Ainda que o agente estatal atue fora de suas funções, mas a pretexto de as exercê-las, o fato é tido como administrativo, no mínimo pela má escolha do agente (culpa in elegendo) ou pela má fiscalização de sua conduta (culpa in vigilando). O segundo pressuposto é o dano. [...] Não importa a natureza do dano: tanto é indenizável o dano patrimonial como o dano moral. [...] O último pressuposto é o nexo causal (ou relação de causalidade) entre o fato administrativo e o dano. Significa dizer que ao lesado cabe apenas demonstrar que o prejuízo sofrido se originou da conduta estatal, sem qualquer consideração sobre o dolo ou a cul- pa (Manual de Direito Administrativo, 23ª edição, página 605, Editora Lumen Juris, 2010). Conclui-se que não será possível estender às cegas o risco integral que se Jurisprudência - Direito Público extrai da responsabilidade objetiva do Estado, na medida em que tal raciocínio inexoravelmente o transformaria em segurador universal, responsabilizando-o por todas as mazelas que acometessem os cidadãos, mesmo aqueles decorrentes de sua própria conduta. O dano moral coletivo constitui categoria autônoma de dano atinente a lesão grave, injusta e intolerável a valores e a interesses fundamentais da socie- dade, independentemente da comprovação de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral. Há uma lesão transindividual que aflige a coletividade em si, seus valores e interesses fundamentais, a dignidade de seus membros e o padrão ético difundido. Conceitua Cristiano Caves de Faria, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto o dano moral coletivo como o resultado de toda ação ou omissão lesiva significante, praticada por qualquer pessoa contra o patrimônio da co- letividade, considerada esta as gerações presentes e futuras, que suportam um sentimento de repulsa por um fato danoso irreversível, de difícil reparação, ou de consequências históricas (Curso de Direito Civil - Responsabilidade Civil, 6ª edição, página 357, Editora Jus Podivm, 2019). Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça firma sua jurisprudência: RECURSO ESPECIAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DANO MORAL CO- LETIVO – DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS – IMPOSSIBILIDADE. 1- O dano moral coletivo é aferível in re ipsa, ou seja, sua configuração decor- re da mera constatação da prática de conduta ilícita que, de maneira injusta e intolerável, viole direitos de conteúdo extrapatrimonial da coletividade, re- velando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral. Precedentes. 2- Independentemente do número de pessoas concre- tamente atingidas pela lesão em certo período, o dano moral coletivo deve ser ignóbil e significativo, afetando de forma inescusável e intolerável os valores e interesses coletivos fundamentais. 3- O dano moral coletivo é essencialmente transindividual, de natureza coletiva típica, tendo como destinação os interes- ses difusos e coletivos, não se compatibilizando com a tutela de direitos indivi- duais homogêneos. 4- A condenação em danos morais coletivos tem natureza eminentemente sancionatória, com parcela pecuniária arbitrada em prol de um fundo criado pelo art. 13 da LACP – fluid recovery –, ao passo que os danos morais individuais homogêneos, em que os valores destinam-se às vítimas, bus- cam uma condenação genérica, seguindo para posterior liquidação prevista nos arts. 97 a 100 do CDC. 5- Recurso especial a que se nega provimento (REsp nº 1.610.821/RJ, Quarta Turma, relator Ministro Luis Felipe Salomão, j. 456 15/12/2020). No entanto, os danos decorrentes da fatídica precipitação ocorrida em fevereiro de 2023, não foram causados tão somente pelas omissões de políticas públicas, mas em grande parte pelo volume extraordinário e inesperado de chu- Jurisprudência - Direito Público va concentrado no litoral norte. Os deslizamentos ocorreram em massa, inclusive em encostas onde não havia construções, mas afetando também construções regulares. Como leciona Marçal Justen Filho, o caso fortuito ou força maior afasta, em todos os setores do direito, a responsabilização civil. Envolve hipóteses em que o dano é produzido por causas alheias à vontade ou ao controle de alguém, insuscetíveis de impedimento. Dito em outras palavras, o Estado não é respon- sabilizável, porque o dano se produziu não obstante tivesse ele observado todas as cautelas derivadas do dever de diligência a ele imposto (Curso de Direito Administrativo, 9ª edição, página 1322, Revista dos Tribunais, 2013). Configurada a excludentes de causalidade capaz de afastar a responsabi- lidade estatal em relação a danos coletivos. 6- Destaco precedentes desta Corte Bandeirante com ações civis públicas ajuizadas pelo parquet com os mesmos pedidos e causa de pedir, todavia, em relação a diferentes bairros: APELAÇÃO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – PLANO DE MICRODRENA- GEM – PRELIMINARES – Ilegitimidade passiva do Estado de São Paulo afas- tada, dado que compete ao órgão estadual garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, o bem-estar dos seus moradores e restringir a utilização de áreas de riscos geológicos – Chamamento da União Federal ao processo que não merece prosperar, eis que em nível federal existe obrigação apenas de elaborar normas para implementação da PNPDEC, bem como a responsabilidade solidária de todos os entes federativos faculta ao demandan- te a composição do polo passivo. MÉRITO – Pretensão inicial do Ministério Público voltada a compelir o Estado de São Paulo e o Município de São Se- bastião a elaborar Plano de Microdrenagem de Águas Pluviais para o bairro da Boraceia – Decisão singular que determinou à Administração Municipal (i) monitoramento das condições meteorológicas e avaliação periódica do avanço da ocupação da planície de inundação do curso d’água; (ii) elaboração de cro- nograma de ações de fiscalização e controle da ocupação das áreas de risco; (iii) criação de Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil NUPDEC na região; (iv) confecção de cartas periódicas anuais de suscetibilidade a movi- mentos gravitacionais de massa e inundações e geotécnica de aptidão à urbani- zação de todo o bairro de Boracéia; (v) adoção de todas as medidas apontadas pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (2018) no Plano Municipal de Redu- ção de Riscos (PMRR) nas áreas indicadas com possibilidade de movimento de massa ou escorregamento, no prazo de 180 dias; (vi) a atualização do ma- peamento de riscos, executando todas as medidas estruturantes e não estrutu- rantes que se façam adequadas à nova classificação eventualmente alcançada, no mesmo período; e (vii) a limpeza periódica das valas e canais de drenagem, sob pena de multa; e, subsidiariamente, ao Estado de São Paulo foi imposto o Jurisprudência - Direito Público dever de agir em caso de descumprimento das obrigações de fazer impostas, bem como apoiar, sempre que necessário, a localidade no levantamento das áreas de risco, sobretudo na elaboração, atualização e cumprimento do Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil PLANCON e Plano Municipal de Redução de Riscos PMRR; identificar e mapear as áreas de risco e realizar estudos de identificação de ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades, em articulação com o corréu; e realizar o monitoramento meteorológico, hidro- lógico e geológico das áreas de risco, em articulação com a gestão municipal – Pretensão de reforma – Impossibilidade – Estudos técnicos promovidos pelo MPSP que demonstraram a inércia das Administrações Estadual e Municipal para efetivar políticas públicas destinadas à proteção dos direitos fundamentais ao meio ambiente equilibrado, à moradia e à saúde – necessidade de proteção à coletividade – Princípio da separação do poderes ante a inércia ou morosidade do Poder Público na efetivação de medidas garantidoras dos preceitos cons- titucionais essenciais que se encontra preservado – Prazo estabelecido para implementação do Plano de Microdrenagem de Águas Pluviais não configura decisão ultra petita, visto que ao magistrado é facultado estabelecer limites no dispositivo para dar maior efetividade ao provimento jurisdicional – Sen- tença de parcial procedência mantida. Apelos desprovidos (Apelação Cível nº 1002583-23.2023.8.26.0587, 4ª Câmara de Direito Público, relator Desembar- gador Paulo Barcellos Gatti, j. 10/02/2025). APELAÇÕES CÍVEIS – Ação civil pública – Desastre ambiental que atingiu o Município de São Sebastião em fevereiro/2023 – Bairro de Maresias – Sentença de parcial procedência – Condenação do Município no cumprimento de obrigações de fazer, no prazo de 180 dias – Condenação da Fazenda do Es- tado em obrigações de fazer próprias e subsidiariamente nas obrigações impos- tas ao Município – Danos morais coletivos improcedente – Apelação do Mis- tério Público, da Prefeitura Municipal de São Sebastião e da Fazenda Pública do Estado de São Paulo. 1- Preliminar de ilegitimidade passiva da Fazenda do Estado de São Paulo – Obrigação do ente estatal de garantir o bem-estar dos habitantes, bem como a preservação, proteção e recuperação do meio ambien- te, entre outras prevista na Constituição Federal Lei nº 12.608/12, que institui a Política Nacional de Proteção de Defesa Civil, que prevê a competência dos Estados para diversas ações – Constituição do Estado de São Paulo que pre- vê aquelas incumbências ao Estado Preliminar afastada. 2- Chamamento da União Federal ao processo Lei nº 12.608/12 que atribui à União a obrigação de expedir normas para implementação da PNPDEC – Art. 21, inc. XVIII da CF – Competência comum constitucional Responsabilidade solidária entre todos os entes federativos – Faculdade do demandante na inclusão ou não de todos os entes federativos no polo passivo – Ausência, contudo, de apontamento na inicial de omissão da União – Preliminar afastada. 3- Danos morais coleti- vos – Aferível in re ipsa – Comprovação de adoção das medidas necessárias à prevenção de desastres no bairro de Maresias, em conformidade com o que Jurisprudência - Direito Público previa o PMRR – Ausência, com relação a área objeto da demanda (Maresias), de omissão estatal seja nas medidas de prevenção, seja na atuação em resposta ao desastre ocorrido – Volume extraordinário e inesperado de chuva concen- trado na região em que localizado o Município de São Sebastião – Fenômeno da natureza que configura força maior, causa excludente da responsabilidade. Danos morais coletivos afastados. 4- Controle da implementação de Políticas Públicas pelo Poder Judiciário – Possibilidade – Ausência de violação ao prin- cípio da separação dos poderes ante a inércia ou morosidade do Poder Público na efetivação de políticas públicas garantidoras dos preceitos constitucionais essenciais – Discricionariedade do Administrador que não se sobrepõe à tutela obrigatória de direitos fundamentais pelo Poder Público. 5- Responsabilidade solidária dos entes federativos na adoção e elaboração de políticas públicas voltadas à redução desastres Art. 4º, I, da Lei nº 12.608/2014 – Precedentes do c. STJ – Execução de medidas de prevenção e contingenciamento e ações de fiscalização e controle de ocupação de áreas de risco que são de atribui- ção exclusiva do Município, previsto nas normas que regulamentam o assunto. 6- Imposição de prazo para cumprimento das obrigações de fazer – Sentença extra petita – Inocorrência – Medida imposta de ofício pelo juiz para garantia de cumprimento da obrigação de fazer – Extensão, contudo, do prazo fixado pela sentença para 360 dias, tendo em vista a complexidade das obrigações e interdependência sequencial entre elas para sua concretização. Sentença par- cialmente reformada. Recurso da parte autora improvido. Parcialmente provi- do o recurso da Prefeitura. Recurso da Fazenda Estadual provido parcialmente (Apelação Cível nº 1002339-94.2023.8.26.0587, 7ª Câmara de Direito Público, relator Desembargador Francisco Shintate, j. 09/12/2024). Por meu voto, nego provimento às três apelações.