APELAçãO – Apelação Cível. Responsabilidade civil. Indenização – Dano moral – Evento danoso decor- rente de fortes chuvas e deslizamentos – Ocupação irregular – Moradia edificada sem aprovação do mu- nicípio – Mapeamento da região e classificação como área de alto risco – Culpa exclusiva da vítima – Rom- pimento do nexo de causalidade – Sentença de proce- dência do pedido reformada. Dá-se provimento ao recurso do município, prejudi- cado o recurso da requerente.(TJSP; Processo nº 1009904-71.2022.8.26.0223; Recurso: Apelação; Relator: RICARDO ANAFE; Data do Julgamento: 5 de junho de 2025)
, em sessão permanente e virtual da 13ª Câmara de Direito
Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “de-
ram provimento ao recurso do Município de Guarujá, prejudicado o recurso
da requerente. V.U”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este
acórdão. (Voto nº 34.104)
O julgamento teve a participação dos Desembargadores RICARDO ANA-
FE (Presidente), FLORA MARIA NESI TOSSI SILVA e ISABEL COGAN.
São Paulo, 5 de junho de 2025.
RICARDO ANAFE, Relator
Ementa: Apelação Cível. Responsabilidade civil.
Indenização – Dano moral – Evento danoso decor-
rente de fortes chuvas e deslizamentos – Ocupação
irregular – Moradia edificada sem aprovação do mu-
nicípio – Mapeamento da região e classificação como
área de alto risco – Culpa exclusiva da vítima – Rom-
pimento do nexo de causalidade – Sentença de proce-
dência do pedido reformada.
Dá-se provimento ao recurso do município, prejudi-
cado o recurso da requerente.
VOTO
Vistos.
1. Trata-se de ação de rito ordinário proposta por T.G.J., menor represen-
tada por sua mãe G.C.G.F. em face do Município de Guarujá, pleiteando a con-
denação do requerido ao pagamento de indenização por danos morais estimados
em valor estimado à ordem de R$200.000,00 (duzentos mil reais). O pedido
foi julgado procedente para condenar o requerido ao pagamento à requerente
de indenização pelos danos morais causados, no valor de R$100.000,00 (cem
mil reais), corrigidos monetariamente pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça
Jurisprudência - Direito Público
de São Paulo, e acrescidos de juros de mora de acordo com o art. 1º-F da Lei
nº 9.494/1997, até a vigência da Emenda Constitucional nº 113/2021, além de
honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor total da condenação (fl.
573/580).
Inconformado, insurge-se o Município (fl. 585/598), visando, em resumo,
a reforma da sentença, com a inversão do julgado.
Apela a requerente, objetivando a modificação dos consectários inciden-
tes na espécie (fl. 602/606).
Processado regularmente, sobrevindo contrarrazões (fl. 607/632;
638/641), subiram os autos a esta Instância.
Instada, a d. Procuradoria de Justiça não se manifestou (fl. 650).
É o relatório.
2. T.G.J., menor representada por sua mãe G.C.G.F. propôs ação de in-
denização por danos morais em face do Município de Guarujá ao argumento
de que a família mantinha residência fixa em local conhecido como Barreira
do João Guarda, no Município de Guarujá, Estado de São Paulo, e no dia 03
de março de 2020, em decorrência de fortes chuvas que ocorreram na Baixada
Santista, durante todo aquele mês, ocorreram deslizamentos, e sua casa foi du-
ramente atingida, sendo levada pelas terras do morro, tornando-se inabitável.
Além da perda da própria residência, e de todos os utensílios e móveis que a
guarneciam, seus irmãos A.G.O. e A.A.G.S. faleceram no soterramento. Tais
fatos se devem à omissão e negligência por parte do requerido, que permitiu
por longo período a ocupação irregular do local, deixando de adotar medidas de
mitigação adequadas. Por consequência, sofreu graves danos morais, em decor-
rência do sofrimento pela morte dos irmãos menores, motivo por que o Muni-
cípio de Guarujá deve ser condenado ao pagamento de indenização pelos danos
morais causado, em valor estimado em R$200.000,00 (duzentos mil reais).
Ex ante, de rigor o afastamento da arguição suscitada em contrarrazões,
de ofensa ao princípio da dialeticidade, eis que não se subsume o alegado vício
formal de constituição recursal, posto que preservado o necessário liame lógico
entre a decisão e o recurso interposto pela requerida, observados, portanto, os
pressupostos recursais objetivos e subjetivos, a teor do artigo 1.010 do Código
de Processo Civil.
Quanto ao mérito propriamente dito, é sabido que o processo dialético
processual civil se desenvolve pelo raciocínio lógico-formal de tese, antítese e
síntese, importando na exata tradução da causa petendi e pedido na tese, a fim
de possibilitar o acionamento constitucional do due process of law, mormente
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no que concerne ao contraditório. A culpa aquiliana deve ser demonstrada pela
vítima, no caso, a requerente, a quem a legislação processual civil cometeu a
prova dos fatos constitutivos de seu direito, incumbindo-lhe, outrossim, a pro-
dução da prova documental que possuir e tiver pertinência.
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Com efeito, em contestação, o Município nega possuir responsabilidade
nos discutidos eventos, e sustenta que o lugar onde se localizava a casa da re-
querente e sua família é marcado por invasões e construções clandestinas que
nunca contaram com a aprovação municipal. A Defesa Civil sempre exerceu
trabalho de conscientização da população local, alertando-a sobre os riscos de
deslizamentos no local, bem como sobre os procedimentos a serem adotados
em caso de emergência, não havendo se falar, portanto, em omissão. Trata-se
de questão complexa que se confunde com a peculiaridade do município, que
recebeu forte movimento migratório nos últimos anos, não lhe sendo possível
absorver todo esse contingente de pessoas vindas de outras regiões, a despeito
das inúmeras iniciativas habitacionais. Promoveu o mapeamento da região, e
de acordo com a classificação definida pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas
- IPT (fl. 256/271), adotou medidas para mitigar os riscos envolvidos, notada-
mente no caso da Barreira do João Guarda, remanescendo apenas áreas classi-
ficadas como R3 na localidade (fl. 264; 268/269), inclusive com tratativas junto
ao Ministério Público Estadual, prova disso é o Procedimento Administrativo nº
31170/2022, no qual se solicitou à Defesa Civil entendimento técnico da situa-
ção dessas áreas de risco especificamente, no qual não se identificou nenhuma
moradia para remoção imediata. O volume de chuvas que atingiu a Baixada
Santista em março de 2020 foi extraordinário e atingiu não só as áreas de risco,
como toda a região. Os moradores foram alertados sobre os riscos envolvidos
pelo Corpo de Bombeiros e pela Defesa Civil. Além disso, prestou auxílio loca-
ção e contemplação urgente em programa habitacional. Houve culpa exclusiva
da vítima. Não deu causa ao evento objeto do pedido. Subsidiariamente, alega
serem elevados os danos morais pleiteados (fl. 208/230).
A par disso, o rol documental é indicativo de que o imóvel onde a re-
querente residia com sua família, e que se encontrava em ocupação clandestina
classificada pela Defesa Civil do Município de Guarujá como área de risco no
Prolongamento da Avenida Atlântica, Barreira do João Guarda, Guarujá, Estado
de São Paulo (fl. 233), foi destruído pelo deslizamento ocorrido no dia dos fatos,
e em 25 de março de 2020 foi demolido por ordem da Secretaria de Defesa e
Convivência Social (fl. 232; 247; 252).
O relatório apresentado pelo Município de Guarujá reporta, ainda, que
em estudo realizado no ano de 2007, e que foi atualizado em 2016, já havia
classificado a região onde estava localizado o imóvel em questão como R3, ou
seja, de risco elevado. Tal relatório integrou o Plano Municipal de Redução de
Riscos, e contou com a realização de audiências públicas, ensejando a revisão
e atualização do Plano Municipal de Redução de Riscos - PMRR (fl. 233/241).
Acresça-se a isto que não há nos autos prova documental, ou qualquer
outra, que demonstre a regularidade da ocupação, ou mesmo que o município a
tenha autorizado os moradores a edificar no local do trágico evento.
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Não se olvida, ainda, que para a responsabilidade civil extracontratual por
conduta omissiva, é indispensável a demonstração não só do fato da natureza,
mas também da incúria do Poder Público no descumprimento do dever de agir,
dicção do artigo 37, parágrafo sexto, da Constituição Federal, circunstância não
verificada na espécie.
A prova testemunhal, aliás, ratifica que no período do evento, o muni-
cípio suportou chuva em volume atípico, com alagamentos, deslizamentos de
material vegetal da encosta, quedas de árvores, e destruição de várias moradias
irregulares, de salientar-se, que não eram passíveis de conformação com a lei.
Assim, não há falar-se em omissão quanto ao poder-dever da Adminis-
tração.
Além disso, o C. Superior Tribunal de Justiça já se manifestou ao teor de
que a: “posse é o direito reconhecido a quem se comporta como proprietário.
Posse e propriedade, portanto, são institutos que caminham juntos, não haven-
do de se reconhecer a posse a quem, por proibição legal, não possa ser pro-
prietário ou não possa gozar de qualquer dos poderes inerentes à propriedade”
(REsp nº 863.939/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 04/11/08).
Por conseguinte, à responsabilização pretendida, é necessário que a omis-
são por parte do Município tenha causado o dano experimentado pela requeren-
te, e por todos os fundamentos deduzidos, malgrado o trágico evento que viti-
mou fatalmente seus irmãos, não há o indispensável pressuposto lógico-causal
de responsabilização, eis que in casu, o Município de Guarujá adotou medidas
tendentes ao mapeamento, identificação das áreas de risco e classificação de
risco das áreas de encosta. A Defesa Civil, à sua vez, alertou os moradores sobre
os riscos, e ainda assim, as famílias permaneceram no local até o deslizamento
de grande porte, que avassalou as edificações no seu entorno. O município ainda
disponibilizou aos moradores atingidos o auxílio locação, e lhes deu prioridade
nas inscrições para os programas habitacionais locais.
Neste particular, a mãe da requerente, que ora a representa, recebeu pron-
to atendimento social, percebendo o valor inicial de R$1.500,00 (mil e qui-
nhentos reais), mais onze parcelas de R$200,00 (duzentos reais), pelo período
de doze meses, e que foi prorrogado por igual período, em março de 2021.
Além disso, a genitora da requerente foi inserida no Programa de locação so-
cial do município (fl. 242; 245/246), e recebeu, desde junho de 2020, o valor
de R$300,00 (trezentos reais) mensais, mais parcela inicial de R$1.000,00 (mil
reais) de Auxílio Moradia Emergencial, advindo do convênio firmado com o Es-
tado de São Paulo, por meio da CDHU. Foi inserida, ainda, no Programa Habi-
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tacional que, mediante convênio firmado com o Ministério de Desenvolvimento
Regional e a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, e deverá receber
uma unidade habitacional localizada na Quadra 02, do Núcleo Canta Galo, no
bairro da Enseada, e vem sendo atendida nesse ínterim, pela equipe psicossocial
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do Programa (fl. 242).
Por fim, os documentos carreados pela requerente para comprovar a dita
recalcitrância do Município no cumprimento de medidas judiciais tendentes à
mitigação e prevenção do evento aqui tratado, referem-se a ações civis pública
propostas pelo Ministério Público Estadual pleiteando medidas específicas de
desocupação imediata, e outras providências, relativas às localidades da Vila
Baiana (Proc. nº 0009643-75.2012.8.26.0223), e à Praia do Góes (Proc. nº
0003269-43.2012.8.26.0223 – pesquisa site Tribunal de Justiça), não repercu-
tindo nos fatos aqui tratados.
Já nos autos da ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Es-
tado de São Paulo em face do Município de Guarujá em 05 de maio de 2017, de-
corrente do Inquérito Civil nº 12/2010 (Proc. nº 1006173-43.2017.8.26.0223),
houve pedido específico em relação à comunidade existente na região da Bar-
reira do João da Guarda, notadamente, dentre inúmeras medidas, a da remoção
das quarenta e duas famílias residentes no setor denominado R3, de alto risco,
indicados no parecer técnico 148222-205 do IPT, bem como o fornecimento de
alojamento das famílias em local adequado, ou o pagamento de aluguel social,
no prazo de 90 dias.
A tutela de urgência foi indeferida pelo MM. Juízo, ensejando a interpo-
sição do Agravo de Instrumento nº 2146719-24.2017.8.26.0000, que deu provi-
mento ao recurso do Ministério Público (fl. 359/378), cuja decisão transitou em
julgado em 21 de outubro de 2019 (fl. 4168 daqueles autos), comunicado o MM.
Juízo em 23 de outubro de 2019 (fl. 2872 – ACP), ou seja, a Turma Julgadora de-
terminou a remoção dos moradores do local, na forma pleiteada pelo Ministério
Público, assegurando-lhes o direito à assistência pleiteada.
Ocorre que não se trata de questão simples, mas sim de elevada com-
plexidade, que envolve a existência de moradias irregulares que assola grande
parte dos municípios, sendo certo também que a fiscalização regular por parte
da Administração não é suficiente para conter sua expansão.
Prova disso é a discussão travada nos autos da aludida ação civil pú-
blica, na qual, mesmo após a decisão proferida no Agravo de Instrumento nº
2146719-24.2017.8.26.0000, concedendo a tutela de urgência negada initio litis,
em audiência realizada em 06 de fevereiro de 2019, ou seja, antes do trânsito
em julgado do recurso, o Ministério Público e o Município de Guarujá firma-
ram acordo para identificar as localidades prioritárias das medidas inicialmente
pleiteadas, com base em critério de risco, para intervenções, com a realização
de obras estruturais, informando-se as datas das intervenções, identificação das
modalidades que se iniciariam, medidas que abrangiam, além daquele processo,
outros doze em andamento (fl. 2825 – ACP).
O MM. Juízo, comunicado acerca do trânsito em julgado da decisão
concessiva da tutela de urgência, em 04 de abril de 2020, determinou que se
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aguardasse o acordo em andamento no Processo nº 1006232-31.2017 (fl. 2901
– ACP), até que em 13 de abril de 2022, o Ministério Público informou a ce-
lebração do Convênio nº 1000798/2022, entre a Secretaria Estadual de Desen-
volvimento Regional e o Município de Guarujá, para transferência de recursos
destinados à infraestruturas urbana, requerendo que o ente federativo municipal
informasse acerca de eventual contratação de empresa para execução das obras
necessárias à contenção do Morro da Barreira do João Guarda (fl. 3144 – ACP).
Advieram novas suspensões de prazo, até que em 30 de agosto de 2023, o
r. juízo foi comunicado sobre o acordo celebrado em ação civil pública diversa,
que envolvia causa materialmente similar àquela em discussão (Processo nº
1006232-31.2017), suspendendo-se uma vez mais aquele processo (fl. 3267 –
ACP).
Por fim, sobre as providências que abrangiam o Morro da Barreira do
João Guarda, onde a requerente residia com a família, em 25 de março de 2025,
o Ministério Público requereu nova suspensão daquele processo, pois, as par-
tes estavam em avançadas tratativas para a adoção das medidas que abrangiam
também aquela comunidade, prazo esse deferido, por cento e vinte dias, em 26
de março de 2025 (fl. 3423 – APC).
Por conseguinte, o que se considera para a responsabilização civil do ente
federativo é se houve, ou não, a adoção de medidas tendentes à conscientização
dos moradores, e à mitigação de eventual evento natural de risco, pois, nos ter-
mos sobejamente fundamentados, trata-se de construções clandestinas que não
são passíveis de regularização.
O próprio relator do referido Agravo de Instrumento que concedeu a tute-
la de urgência de remoção das famílias, providência essa que foi suspensa com
a anuência do autor da ação civil pública referida, para celebração de acordo
abrangente, visando a mitigação da situação de diversas comunidades locali-
zadas clandestinamente em encostas, e não só a da Barreira do João Guarda,
destacou que a empreitada então pretendida pelo Ministério Público envolve-
ria número inestimado de moradores, sequer havia documentação precisa sobre
quantas pessoas seriam removidas de seus lares, todas moradoras de regiões
classificadas como de alto risco.
Assim, diante de tais circunstâncias, e segundo a documentação que ins-
truiu a presente ação, conclui-se que o Município de Guarujá, dentro de suas
competências, adotou as medidas recomendadas, exercendo seu poder de po-
lícia, identificando as moradias de risco e seus ocupantes, conscientizando-os
dos riscos envolvidos previamente aos fatos tratados e, após o dramático evento
aqui tratado, ofereceu auxílio para moradia, além de prioritário cadastramento
em programa de habitação popular, ausente prova de que o controvertido e trá-
gico episódio foi causado por ação ou omissão do ente federativo.
Ao revés, se trata de grave questão social que tanto Município quanto o
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Estado, vêm tentando mitigar, mas, que foge ao controle e ao efetivo exercício
do poder de polícia.
Assim, o que realmente se verifica no caso concreto é a ocorrência da ex-
cludente de responsabilidade da culpa exclusiva da vítima, que com sua família
estabeleceu moradia em ocupação irregular localizada em área de risco classifi-
cado no grau 3, assim mapeada e classificada pela Defesa Civil previamente aos
tristes acontecimentos noticiados, motivo por que, respeitado o entendimento
do MM. Juízo, a requerente não faz jus à indenização pleiteada, sendo de rigor
o acolhimento do recurso interposto pelo Município de Guarujá para reformar a
sentença para julgar improcedente o pedido e, consequentemente, prejudicado
o recurso da requerente.
Por epítome, a r. sentença recorrida é reformada para julgar improcedente
o pedido, carreando-se à requerente o pagamento das custas e despesas proces-
suais, além de honorários advocatícios fixados em 11% sobre o valor atualizado
da causa, observando-se a gratuidade processual.
3. À vista do exposto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso do Mu-
nicípio de Guarujá, prejudicado o recurso da requerente.