APELAçãO – COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. Imóvel. Resolução contratual. Incidência do Código de Defesa do Consumidor. Cláusula de eleição de foro aleatório. Ineficácia no caso concreto. Preliminar de incompetência rejeitada. Julgamento antecipado da lide não implica, por si só, cerceamento de defesa nem configura decisão surpresa, pois está inserido no âm- bito do desdobramento causal, possível e natural da controvérsia. Ademais, o magistrado não tem o dever de intimar previamente as partes sobre a aplicação do art. 355, I, do CPC. Atraso injustificado na entrega da obra. Inadimplemento da vendedora configurado. Inteligência da Súmula n. 161 do TJSP. Restituição imediata e integral das parcelas pagas. Súmula n. 2 do TJSP. Tema Repetitivo n. 577 e Súmula n. 543 do STJ. Cláusula penal. Afastamento. Impossibilidade. Mul- ta devida e incidente, por expressa previsão contra- tual, sobre o valor da venda. Sentença de procedência mantida. Recurso não provido. 55(TJSP; Processo nº 1031033-69.2024.8.26.0577; Recurso: Apelação; Relator: GILSON DELGADO MIRANDA; Data do Julgamento: 10 de abril de 2025)
, em sessão permanente e virtual da 35ª Câmara de Direito
Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Nega-
ram provimento ao recurso. V.U.”, de conformidade com o voto do Relator, que
integra este acórdão. (Voto nº 31.446)
O julgamento teve a participação dos Desembargadores ANA MARIA
BALDY (Presidente) e MARRONE SAMPAIO.
São Paulo, 10 de abril de 2025.
GILSON DELGADO MIRANDA, Relator
Ementa: COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA.
Imóvel. Resolução contratual. Incidência do Código
de Defesa do Consumidor. Cláusula de eleição de foro
aleatório. Ineficácia no caso concreto. Preliminar de
incompetência rejeitada. Julgamento antecipado da
lide não implica, por si só, cerceamento de defesa nem
configura decisão surpresa, pois está inserido no âm-
bito do desdobramento causal, possível e natural da
controvérsia. Ademais, o magistrado não tem o dever
de intimar previamente as partes sobre a aplicação do
art. 355, I, do CPC. Atraso injustificado na entrega
da obra. Inadimplemento da vendedora configurado.
Inteligência da Súmula n. 161 do TJSP. Restituição
imediata e integral das parcelas pagas. Súmula n. 2 do
TJSP. Tema Repetitivo n. 577 e Súmula n. 543 do STJ.
Cláusula penal. Afastamento. Impossibilidade. Mul-
ta devida e incidente, por expressa previsão contra-
tual, sobre o valor da venda. Sentença de procedência
mantida. Recurso não provido.
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VOTO
Vistos.
Cuida-se de recurso de apelação interposto para impugnar a sentença de
Jurisprudência - Direito Privado
fls. 687/694, complementada a fls. 720/722 (embargos de declaração) e 727,
cujo relatório adoto, proferida pelo juiz da 6ª Vara Cível da Comarca de São
José dos Campos, Dr. Alessandro de Souza Lima, que julgou procedentes os pe-
didos para “reconhecer a rescisão do contrato que vincula as partes e CON-
DENAR a requerida a devolver de uma só vez à parte autora os valores
recebidos a serem calculados nos termos acima, com correção monetária,
desde cada pagamento. O total a ser devolvido sofrerá a incidência de juros
de mora a contar dos respectivos desembolsos até o efetivo pagamento”
(fls. 722), além de multa “de 10% sobre o valor da venda, ou seja, o valor
global do contrato, conforme cláusula de nº 6.2, do Instrumento Particular
firmado entre as partes” (fls. 727). Condenou a ré ao pagamento das custas,
das despesas processuais e dos honorários advocatícios sucumbenciais fixados
em 10% do valor da condenação.
Segundo a apelante, ré, a sentença deve ser anulada, preliminarmente, por
(i) incompetência relativa; e (ii) cerceamento de defesa. No mérito, impugna a
incidência da legislação consumerista no caso concreto. Sustenta que a pande-
mia configura caso fortuito ou força maior, o que exclui sua responsabilidade
civil pelo atraso na entrega da obra e pela resolução do contrato. Rechaça a
aplicabilidade da Súmula n. 543 do STJ, pois, de acordo com a orientação ju-
risprudencial, a restituição imediata das parcelas pagas somente deve ocorrer
quando se tratar de contrato submetido ao CDC e resolvido por culpa exclusiva
da vendedora. Por fim, requer o afastamento da multa contratual; subsidiaria-
mente, defende que a legislação estabelece que a base de cálculo da cominação
é o montante pago e não o valor do contrato.
Recurso tempestivo, preparado (fls. 762/763) e respondido (fls. 767/778).
Esse é o relatório
Em sede de juízo de prelibação, anoto a suficiência do recolhimento do
preparo, pois, diferentemente do que restou certificado pela Serventia a fls. 780
e calculado a fls. 781, havendo preceito condenatório, a taxa judiciária tem como
base o valor da condenação (art. 4º, § 2º, da Lei n. 11.608/2003) e não o valor da
causa (art. 4º, inciso II, daquele mesmo diploma).
Admissível o recurso, conheço do apelo, mas lhe nego provimento.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que incide o Código de Defe-
sa do Consumidor no caso em exame.
De fato, a relação jurídica existente entre as partes, uma pessoa jurídi-
ca (empreendedora/incorporadora) como promitente vendedora e uma pessoa
física como compromissária compradora, tendo por objeto um bem imóvel, é
inequivocamente de consumo, enquadrando-se perfeitamente nos conceitos dos
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artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor, como, aliás, já se decide
há décadas: “o contrato de promessa de compra e venda de imóvel residen-
cial celebrado entre a construtora ou incorporadora e o promissório com-
prador insere-se no âmbito do Código de Defesa do Consumidor, uma vez
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presente a atividade comercial do fornecedor de produtos e serviços” (STJ,
REsp n. 299.445-PR, 4ª Turma, j. 17-05-2001, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar).
É bem verdade que a apelante, partindo da natureza do imóvel
(multipropriedade em empreendimento hoteleiro), alega que o bem teria sido
adquirido para fins de “investimento” e o comprador, por ser “investidor”, nun-
ca poderia ser considerado “consumidor”.
Sem razão, contudo.
Com efeito, “segundo a jurisprudência do STJ, ‘o adquirente de uni-
dade imobiliária, mesmo não sendo o destinatário final do bem e apenas
possuindo o intuito de investir ou auferir lucro, poderá encontrar abrigo da
legislação consumerista com base na teoria finalista mitigada se tiver agido
de boa-fé e não detiver conhecimentos de mercado imobiliário nem exper-
tise em incorporação, construção e venda de imóveis, sendo evidente a sua
vulnerabilidade. Em outras palavras, o CDC poderá ser utilizado para am-
parar concretamente o investidor ocasional (figura do consumidor investi-
dor)’ (REsp n. 1.785.802/SP, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS
CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/2/2019, DJe 6/3/2019)” (STJ,
AgInt-AREsp n. 1.786.252-RJ, 4ª Turma, j. 17-05-2021, rel. Min. Antonio Car-
los Ferreira).
Em segundo lugar, rejeito a tese de incompetência invocada com arrimo
na cláusula de eleição de foro.
Realmente, sendo a relação de consumo, naturalmente o foro de eleição
não pode prevalecer sobre a regra específica prevista no artigo 101, inciso I,
do Código de Defesa do Consumidor: “caracterizada a relação de consumo,
revelam-se incidentes as regras próprias de competência, as quais facultam
ao consumidor escolher o foro do local em que melhor possa deduzir a sua
defesa” (STJ, AgInt-AREsp n. 964.738-BA, 4ª Turma, j. 07-06-2021, rel. Min.
Marco Buzzi).
Não se desconhece que esta Câmara já decidiu recentemente pela va-
lidade da cláusula de eleição de foro em casos parelhos (v.g. TJ, Agravo de
Instrumento n. 2275421-41.2024.8.26.0000, 35ª Câmara de Direito Privado, j.
30-11-2024, rel. Des. Mourão Neto; e TJSP, Agravo de Instrumento n. 2126144-48.2024.8.26.0000, 35ª Câmara de Direito Privado, j. 25-09-2024, rel. Des. Ana
Maria Baldy).
Todavia, no caso concreto, a cláusula de eleição de foro não pode prevale-
cer, pois o consumidor tem domicílio no município de São José dos Campos-SP,
a fornecedora tem sede na Capital paulista e o imóvel objeto do compromisso de
compra e venda está situado na Comarca de Paraipaba-CE (fls. 25).
Logo, impossível reconhecer a eficácia da cláusula de eleição de foro
aleatório, o que, na atualidade, constitui prática abusiva e justifica até mesmo a
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declinação de competência de ofício (art. 63, 5º, do CPC, incluído pela Lei n.
14.879/2024).
Em terceiro lugar, rejeita-se a preliminar de cerceamento de defesa.
De um lado, porque, como é cediço, o destinatário da prova é o juiz e a
finalidade dela é, exatamente, convencê-lo, vigendo no processo civil brasileiro,
em termos de valoração da prova, o sistema da persuasão racional, expressa-
mente adotado no artigo 371 do Código de Processo Civil.
De todo modo, como já pacificado há décadas, “em matéria de julga-
mento antecipado da lide, predomina a prudente discrição do Magistrado,
no exame da necessidade ou não da realização de prova em audiência, ante
as circunstâncias de cada caso concreto e a necessidade de não ofender o
princípio basilar do pleno contraditório” (STJ, REsp n. 3.047, 4ª Turma, j.
21-08-1990, rel. Min. Athos Carneiro).
Na espécie, havia nos autos todos os elementos necessários para a resolu-
ção da controvérsia, não sendo pertinente a produção de nenhuma outra prova,
conforme se verá adiante.
De outro, porque o julgamento antecipado da lide não configura prolação
de decisão surpresa.
Ora, como é largamente sabido, o “julgamento antecipado da lide está
inserto no âmbito do desdobramento causal, possível e natural da contro-
vérsia, obtido a partir de um juízo de ponderação do magistrado à luz do
ordenamento jurídico vigente, o que não caracteriza decisão surpresa. [...]
Nos termos da orientação firmada nesta Corte, o destinatário final da prova
é o juiz, a quem cabe avaliar quanto a sua efetiva conveniência e necessida-
de, advindo daí a possibilidade de indeferimento das diligências inúteis ou
meramente protelatórias, em consonância com o disposto na parte final do
art. 370 do CPC/2015” (STJ, AgInt-AREsp n. 2.126.957-SP, 3ª Turma, j. 06-
03-2023, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva).
Em poucas palavras: o julgamento antecipado da lide não cerceou o direi-
to de defesa nem enquadrou decisão surpresa, porque “o julgador de primeira
instância não tinha o dever de previamente intimar as partes sobre a aplica-
ção do art. 355, I, do CPC/2015” (STJ, AgInt-AgInt-AREsp n. 1.480.468-SP,
4ª Turma, j. 31-05-2021, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira).
Em quarto lugar, impossível o reconhecimento de existência de causa
excludente de responsabilidade civil da fornecedora.
Como se sabe, em se tratando de atraso na entrega da obra de imóvel ad-
quirido por meio de compromisso de compra e venda, “não constitui hipótese
de caso fortuito ou de força maior, a ocorrência de chuvas em excesso, falta
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de mão de obra, aquecimento do mercado, embargo do empreendimento
ou, ainda, entraves administrativos. Essas justificativas encerram ‘res inter
alios acta’ em relação ao compromissário adquirente” (Súmula n. 161 deste
Tribunal de Justiça).
Jurisprudência - Direito Privado
Exatamente por isso, no caso dos autos, já computado o prazo de tole-
rância de até 180 dias na forma da Súmula n. 164 deste Tribunal de Justiça, de
nada adianta à apelante invocar a pandemia da COVID-19 para tentar justificar
o incontroverso atraso.
Como tem sido reiteradamente decidido em casos parelhos, a “alegação
de que o atraso na entrega da unidade imobiliária teria sido ocasionado
pelos impactos da pandemia de Covid-19 não se mostra verossímil, uma vez
que a aludida pandemia não impediu o prosseguimento das atividades de
construção civil no âmbito do Estado de São Paulo, pois estas não foram sus-
pensas ou limitadas, tendo apenas que observar as exigências sanitárias de
prevenção previstas no artigo 2º, § 2º, do Decreto Estadual nº 64.881/2020, e
no artigo 3º do Decreto Estadual nº 64.864/20, bem como na Deliberação nº
2 do Comitê Administrativo Extraordinário Covid-19, criado pelo Governo
do Estado de São Paulo” (TJSP, Apelação n. 1002524-82.2021.8.26.0400, 26ª
Câmara de Direito Privado, j. 06-04-2022, rel. Des. Carlos Dias Motta).
Em quinto lugar, tratando-se de contrato regido pelo CDC e em sendo
resolvido o contrato por inadimplemento da apelante, a restituição das parcelas
pagas deve ser imediata e integral.
Consoante sedimentado na jurisprudência desta Corte, “a devolução das
quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel
deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento
prevista para a aquisição” (Súmula n. 2 do Tribunal de Justiça de São Paulo).
Alguns anos depois, o Superior Tribunal de Justiça pacificou, em âmbito
nacional, esse mesmo entendimento: “em contratos submetidos ao Código
de Defesa do Consumidor, é abusiva a cláusula contratual que determina
a restituição dos valores devidos somente ao término da obra ou de forma
parcelada, na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e
venda de imóvel, por culpa de quaisquer contratantes. Em tais avenças,
deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente
comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente ven-
dedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu
causa ao desfazimento” (Tema Repetitivo 577 STJ, REsp n. 1.300.418-SC, 2ª
Seção, j. 13-11-2013, rel. Min. Luis Felipe Salomão).
Mais recentemente, para colocar uma pá de cal sobre a questão, esse en-
tendimento foi cristalizado pelo Superior Tribunal de Justiça: “na hipótese de
resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido
ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição
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das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de
culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso
tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento” (Súmula n. 543
Jurisprudência - Direito Privado
do Superior Tribunal de Justiça).
Logo, diante do exclusivo inadimplemento da vendedora ao atrasar a en-
trega do imóvel prometido, correta sua condenação à devolução integral do que
foi pago. Vale dizer, não há que se falar em abatimento de custos administrati-
vos, sendo necessário o retorno do adquirente à situação anterior ao contrato. A
apelante deu causa ao desfazimento do contrato.
Em sexto e último lugar, é impossível afastar a incidência da multa pre-
vista na cláusula 6.2 do compromisso de compra e venda firmado.
O fato de o inadimplemento ter origem em atraso na entrega da obra,
questão complexa, não afasta sua culpa exclusiva na resolução do negócio.
E mais: a base de cálculo para a incidência da multa, por expressa dis-
posição contratual, é o “valor da venda”, não havendo nenhuma razão para a
pretendida limitação da cominação a percentual do montante pago.
À vista dessas considerações, a sentença está correta e, por isso, deve ser
integralmente mantida.
Posto isso, nego provimento ao recurso. Sem prejuízo, na forma do artigo
85, § 11, do Código de Processo Civil, majoro para 15% os honorários advoca-
tícios sucumbenciais arbitrados em favor da parte apelada.