Decisão 2045917-37.2025.8.26.0000

Processo: 2045917-37.2025.8.26.0000

Recurso: RECURSO

Relator: PINHEIRO FRANCO

Câmara julgadora: Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça

Data do julgamento: 8 de maio de 2025

Ementa Técnica

RECURSO – DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. MAUS-TRATOS A ANIMAIS. ORDEM DENEGA- DA. I. Caso em Exame 1. Habeas corpus impetrado em favor de Nívea Mara Alves Martin Morales, denunciada por maus-tratos a animais, com base no artigo 32, §1º-A, da Lei nº 9.605/98. A paciente alega constrangimento ilegal de- vido à recusa do Ministério Público em oferecer Acor- do de Não Persecução Penal (ANPP). II. Questão em Discussão 2. A questão em discussão consiste em determinar se a recusa do Ministério Público em oferecer o ANPP, fundamentada na gravidade concreta do fato e na 648 insuficiência do acordo para reprovação do crime, é legal e justificada. Jurisprudência - Seção de Direito Criminal III. Razões de Decidir 3. O Ministério Público possui discricionariedade mi- tigada para oferecer o ANPP, devendo fundamentar adequadamente a recusa. No caso, a recusa foi basea- da na gravidade das agressões cometidas contra o ani- mal, considerado vulnerável devido à idade e saúde debilitada. 4. A jurisprudência entende que o oferecimento do ANPP não é um direito subjetivo do investigado, mas uma faculdade do Ministério Público, que deve ser exercida dentro dos limites legais. IV. Dispositivo e Tese 5. Ordem denegada. Tese de julgamento: 1. A recusa do ANPP pelo Ministé- rio Público, quando fundamentada na gravidade con- creta do fato e na insuficiência do acordo para repro- vação do crime, é legal. 2. O oferecimento do ANPP não constitui direito subjetivo do investigado. Legislação Citada: Lei nº 9.605/98, art. 32, §1º-A Código de Processo Penal, art. 28-A Jurisprudência Citada: STJ, REsp nº 2.038.947/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 17.09.2024. STJ, 5ª Turma, RHC nº 161.251 PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 10.05.2022.(TJSP; Processo nº 2045917-37.2025.8.26.0000; Recurso: RECURSO; Relator: PINHEIRO FRANCO; Data do Julgamento: 8 de maio de 2025)

Voto / Fundamentação

, em 5ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Denegaram a ordem. V. U. Sustentou oralmente dr. Fabio Antonio Tavares dos Santos.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. (Voto n.º 45.723) O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores CLAU- DIA FONSECA FANUCCHI (Presidente) e GERALDO WOHLERS. São Paulo, 8 de maio de 2025. PINHEIRO FRANCO, Relator


EMENTA: DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. MAUS-TRATOS A ANIMAIS. ORDEM DENEGA- DA. I. Caso em Exame 1. Habeas corpus impetrado em favor de Nívea Mara Alves Martin Morales, denunciada por maus-tratos a animais, com base no artigo 32, §1º-A, da Lei nº 9.605/98. A paciente alega constrangimento ilegal de- vido à recusa do Ministério Público em oferecer Acor- do de Não Persecução Penal (ANPP). II. Questão em Discussão 2. A questão em discussão consiste em determinar se a recusa do Ministério Público em oferecer o ANPP, fundamentada na gravidade concreta do fato e na 648 insuficiência do acordo para reprovação do crime, é legal e justificada. Jurisprudência - Seção de Direito Criminal III. Razões de Decidir 3. O Ministério Público possui discricionariedade mi- tigada para oferecer o ANPP, devendo fundamentar adequadamente a recusa. No caso, a recusa foi basea- da na gravidade das agressões cometidas contra o ani- mal, considerado vulnerável devido à idade e saúde debilitada. 4. A jurisprudência entende que o oferecimento do ANPP não é um direito subjetivo do investigado, mas uma faculdade do Ministério Público, que deve ser exercida dentro dos limites legais. IV. Dispositivo e Tese 5. Ordem denegada. Tese de julgamento: 1. A recusa do ANPP pelo Ministé- rio Público, quando fundamentada na gravidade con- creta do fato e na insuficiência do acordo para repro- vação do crime, é legal. 2. O oferecimento do ANPP não constitui direito subjetivo do investigado. Legislação Citada: Lei nº 9.605/98, art. 32, §1º-A Código de Processo Penal, art. 28-A Jurisprudência Citada: STJ, REsp nº 2.038.947/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 17.09.2024. STJ, 5ª Turma, RHC nº 161.251 PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 10.05.2022.





VOTO

Os Advogados Fábio Antônio Tavares dos Santos, Eduardo Tabarelli Kra- sovic e Caroline Amedore Nascimento impetra a presente ordem de HABEAS CORPUS em favor de NÍVEA MARA ALVES MARTIN MORALES, sob a alegação de ele estar sofrendo constrangimento ilegal por ato da MMª. Juíza de Direito da 28ª Vara Criminal da Comarca da Capital. Os impetrantes noticiam que a paciente foi denunciada como incursa no artigo 32, §1º-A, da Lei nº 9.605/98. Tecem comentários sobre o caso, alegando que a cadela pertencente à paciente vivia em ótimas condições. Informam que diversos pedidos de restituição do animal feitos pela paciente, durante o inqué- rito policial, foram negados, mesmo na ausência de indícios de maus-tratos. Re- latam que a cachorrinha faleceu após alguns meses, sob cuidados de terceiros. Salientam que a investigação ficou estacionada por anos, sendo encerrada com laudos periciais inconclusivos que não confirmavam a ocorrência de maus-tra- tos. Entretanto, a paciente foi denunciada. Alegam que o Ministério Público dei- Jurisprudência - Seção de Direito Criminal xou de oferecer proposta de Acordo de Não Persecução Penal e, após a requisi- ção defensiva para remessa dos autos à instância revisora, a negativa foi mantida pela Procuradoria Geral de Justiça. Defendem que a discricionaridade ministe- rial, nesse caso, não pode ser equiparada à liberdade irrestrita ou arbitrariedade, de modo que a decisão de não oferecer ANPP deve estar balizada em critérios objetivos mínimos. Entendem que não há fundamentação idônea que justifique a negativa do Ministério Público. Argumentam pelo preenchimento dos critérios legais para oferecimento do ANPP, circunstância que teria sido reconhecida pelo D. Procurador. Esclarecem que a paciente é primária, com bons antecedentes, nunca foi processada criminalmente e nunca se beneficiou de outros institutos despenalizadores. Reiteram a necessidade de que a discricionariedade conferida ao Ministério Público esteja limitada à própria lei e sua recusa deve ser moti- vada e dentro da legalidade. Aduzem que o requisito referente à necessidade de que o crime investigado não possua, como elementar, o emprego de violência ou grave ameaça, está restrito a situações envolvendo vítimas humanas, discorren- do brevemente sobre essa hipótese. Pugnam, liminarmente, pela suspensão da ação penal nº 1500242-80.2022.8.26.0011 até o julgamento de mérito do “writ”. No mérito, buscam o reconhecimento da nulidade, causada pelo Juízo “a quo”, que permitiu o prosseguimento da ação penal mesmo diante da recusa inidônea do Ministério Público em oferecer proposta de Acordo de Não Persecução Penal à paciente, ensejando o trancamento da ação penal por ausência de justa causa. Subsidiariamente, postula a devolução dos autos ao Ministério Público para que formule proposta de ANPP (páginas 1/26). O pedido liminar foi negado (páginas 726/728). Nas informações, a Ilustre Magistrada noticia que a paciente foi denun- ciada como incursa no artigo 32, §1º-A, da Lei nº 9.605/98, por fatos ocorridos em 26 de março de 2022. Esclarece que a denúncia foi oferecida em 08 de no- vembro de 2024 e recebida dia 12 de novembro. Alega que a Defesa apresentou resposta à acusação postulando a absolvição sumária ou a reconsideração, pelo Ministério Público, quanto ao oferecimento de proposta de Acordo de Não Per- secução Penal. Afirma que o Parquet requereu a ratificação da denúncia. Após a remessa dos autos à Procuradoria Geral de Justiça, sobreveio parecer insistindo na recusa de oferta do ANPP. Assim, o recebimento da denúncia foi ratificado e foi designada audiência de instrução e julgamento para o dia 14 de maio de 2025 (páginas 733/735). Parecer da Ilustrada Procuradoria Geral de Justiça pelo não conhecimento da impetração e, se conhecida, pela denegação da ordem (páginas 741/750). É o relatório. 650 A impetração busca o trancamento da ação penal, por ausência de justa causa, argumentando que a recusa do Ministério Público em oferecer Acordo de Jurisprudência - Seção de Direito Criminal Não Persecução Penal carece de legalidade e fundamentação idônea. Subsidia- riamente, postula a devolução dos autos ao Ministério Público para formulação de proposta de ANPP. De início, saliento que as Cortes Superiores têm entendido que o Ministé- rio Público possui discricionariedade mitigada ao optar pelo oferecimento, ou recusa, do Acordo de Não Persecução Penal. Nessa linha, portanto, deverá apresentar, em caso de recusa, negativa fundamentada que respeite os limi- tes impostos pela lei. Nesse sentido: RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. ART. 28-A, CAPUT e § 14, DO CPP. DISCRI- CIONARIEDADE REGRADA. DEVER-PODER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RECUSA EM OFERECER O ACORDO. FUNDAMENTA- ÇÃO INIDÔNEA. EXCESSO DE ACUSAÇÃO. CABIMENTO DA MI- NORANTE PREVISTA NO ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006. RE- CEBIMENTO DA DENÚNCIA. NULIDADE. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. REMESSA DOS AUTOS AO ÓRGÃO SUPERIOR DO PAR- QUET. INDEFERIMENTO DO MAGISTRADO. ILEGALIDADE. RE- CURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Os mecanismos consensuais constituem maneiras de alcançar resposta penal mais célere ao comportamento criminoso com redução das deman- das judiciais criminais. Entretanto, ao mesmo tempo que aliviam a so- brecarga dos escaninhos judiciais e permitem priorizar o processamento de delitos mais graves, as ferramentas negociais também atuam como instrumentos político-criminais de relegitimação, limitação e redução dos danos causados pelo direito penal. 2. A aplicação das ferramentas de barganha penal observa uma discricionariedade regrada ou juridicamente vinculada do Ministério Público em propor ao investigado ou denunciado uma alternativa consensual de solução do conflito. Não se pode confundir, porém, discricionariedade regrada com arbitrariedade, pois é sob o pris- ma do poder-dever (ou melhor, do dever-poder), e não da mera faculdade, que ela deve ser analisada. 3. Se a oferta de institutos despenalizadores é um dever-poder do Ministério Público e se tais institutos atuam como ins- trumentos político-criminais de otimização do sistema de justiça e, simul- taneamente, de contenção do poder punitivo estatal, com diminuição das cerimônias degradantes do processo e da pena, não cabe ao Parquet esco- lher, com base em um juízo de mera conveniência e oportunidade, se vai ou não submeter o averiguado a uma ação penal. 4. A margem discricio- nária de atuação do Ministério Público quanto ao oferecimento de acordo diz respeito apenas à análise do preenchimento dos requisitos legais, so- bretudo daqueles que envolvem conceitos jurídicos indeterminados. É o que ocorre, principalmente, com a exigência contida no art. 28-A, caput, do CPP, de que o acordo só poderá ser oferecido se for necessário e sufi- Jurisprudência - Seção de Direito Criminal ciente para reprovação e prevenção do crime. 5. Vale dizer, não é dado ao Ministério Público, se presentes os requisitos legais, recusar-se a oferecer um acordo ao averiguado por critérios de conveniência e oportunidade. Na verdade, o que o Ministério Público pode fazer de forma excepcional e concretamente fundamentada é avaliar se o acordo é necessário e sufi- ciente à prevenção e reprovação do crime, o que é, em si mesmo, um re- quisito legal. 6. O Ministério Público tem o dever legal (art. 43, III, da Lei Orgânica do Ministério Público Lei n. 8.625/1993) e constitucional (art. 129, VIII, da CF) de fundamentar suas manifestações e, embora não haja direito subjetivo à entabulação de um acordo, há direito subjetivo a uma manifestação idoneamente fundamentada do Ministério Público. E cabe ao Judiciário, em sua indeclinável, indelegável e inafastável função de dizer o direito (juris dictio), decidir se os fundamentos empregados pelo Parquet se enquadram ou não nas balizas do ordenamento jurídico. 7. A negativa de oferecimento de mecanismo de justiça negocial por não ser necessário e suficiente à reprovação e à prevenção do crime deve sempre se fundar em elementos concretos do caso fático, os quais indiquem exa- cerbada gravidade concreta da conduta em tese praticada. Tal exigência não se satisfaz com a simples menção a qualquer circunstância judicial desfavorável, porquanto a existência de alguma gravidade concreta pode ser inicialmente contornada com reforço e incremento das condições a serem fixadas para o acordo e não justifica, de forma automática, sob a perspectiva do princípio da intervenção mínima que confere natureza subsidiária à ação penal, a recusa à solução alternativa. 8. Não cabe ao Ministério Público nem ao Poder Judiciário, salvo excepcionalmente em caso de inconstitucionalidade como, por exemplo, reconheceu a Segunda Turma do STF em relação aos crimes raciais, deixar de aplicar meca- nismos consensuais legalmente previstos em favor do averiguado com base, apenas, na natureza abstrata do delito ou em seu caráter hediondo. Isso significaria criar, em prejuízo do investigado, novas vedações não previstas pelo legislador, o qual já fez a escolha das infrações incompa- tíveis com a formalização de acordo. (...) (REsp n. 2.038.947/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 17/9/2024, DJe de 23/9/2024.) Observo que, nessa mesma linha, o entendimento pacífico na jurisprudên- cia orienta que o oferecimento de acordo de não persecução penal não repre- senta direito público subjetivo do investigado. Muito pelo contrário. Trata-se, reitero, de faculdade (discricionariedade regrada) do Ministério Público, caben- 652 do unicamente ao Órgão optar pelo oferecimento ou prosseguimento com o ofe- recimento da denúncia. A propósito: De acordo com entendimento já esposado Jurisprudência - Seção de Direito Criminal pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de ofere- cimento do acordo de não persecução penal é conferida exclusivamente ao Ministério Público, não constituindo direito subjetivo do investigado. Cuidan- do-se de faculdade do Parquet, a partir da ponderação da discricionariedade da propositura do acordo, mitigada pela devida observância do cumprimento dos requisitos legais, não cabe ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público que oferte o acordo de não persecução penal (STJ, 5ª Turma, RHC nº 161.251 PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. em 10.05.2022). Portanto, balizado pelos limites estabelecidos, depreende-se, no momento de oferecimento da denúncia (páginas 31/33), que o Ministério Público deixou de ofertar o Acordo de Não Persecução Penal argumentando o seguinte: “Deixo, ainda, de ofertar o acordo de não persecução penal, tendo em vista a gravidade em concreto do fato e a insuficiência do ajuste para a reprovação do crime. Com efeito, a denunciada agrediu brutalmente sua cadela que contava, na data dos fatos, com mais de 15 anos de idade, desferindo contra ela ao menos dois chutes tão fortes que “lançaram” o pequeno animal do chão, conforme demonstra o vídeo acessível pelo link de fl. 599. A veterinária que atendeu o animal afirmou que “Considerando o porte pequeno do animal, disfunção cognitiva pela idade avançada, locomoção lenta, cegueira parcial, discopatia degenerativa e cardiopatia, sua situação é de extrema vulnerabilidade e risco de lesões graves” (sic - fl. 101). Em seu interrogatório policial, NÍVEA afirmou ter agredido NOAH “na tentativa de educá-la”, porque a cadela teria urinado no corredor da garagem do condomínio, o que a deixou muito incomodada (fl. 62). Vê-se, assim, que, a despeito das alegações de enorme carinho por NOAH, isso não impediu que a denunciada praticasse intensas agressões contra ela, o que é agravado pelo fato de se tratar de animal com idade extremamente avan- çada e com saúde debilitada, conforme comprovam os documentos dos autos, de modo que a solução negociada se mostra insuficiente.” A Defesa, irresignada com a recusa, postulou a remessa dos autos à Pro- curadoria Geral de Justiça, nos termos do artigo 28-A, §14, do Código de Pro- cesso Penal, para revisão e possibilidade de reforma da recusa apresentada. Entretanto, o D. Procurador Geral ratificou o entendimento adotado ante- riormente, consignando que, apesar das (i) circunstâncias favoráveis nas quais foi encontrado o animal; (ii) as declarações da veterinária, que afirmou que ele sempre foi bem tratado pela tutora; (iii) a documentação de vacinação e exa- mes do cachorro e; (iv) parecer do médico psiquiatra da acusada, relatando que o animal possuía influência positiva nela após a morte de seus genitores, as provas presentes nos autos indicavam que o fato investigado não se mostrava isolado, inclusive diante da constatação, mediante laudo pericial, de fraturas an- tigas cicatrizadas no animal, compatíveis com a prática de pontapés. Asseverou, também, que mesmo diante do zelo e enorme carinho que a paciente possuía pelo cachorro, isso não teria a impedido de praticar graves agressões, agravadas Jurisprudência - Seção de Direito Criminal por se tratar de animal em idade avançada e saúde debilitada. Entendeu, assim, que o acordo não atenderia aos critérios de necessidade e suficiência (páginas 708/714). Por fim, o D. Procurador relatou que há entendimento institucional, regis- trado no Boletim Criminal do CAOCrim nº 114 a respeito da impossibilidade de acordo em casos similares ao aqui debatido. Esse entendimento1, consoante parecer da I. Promotora de Justiça Monique Mosca Gonçalves, merece al- guns destaques: “Em síntese, no comparativo entre o caput do art. 32 e o §1º-A, deve prevalecer a crítica em relação ao critério eleito e ao grau de distinção realizado em relação à reprovabilidade da conduta, de forma que se faz necessária a adequação do sistema penal ao imperativo moral categóri- co de tutela dos animais, de todos eles, a partir do recrudescimento das penas estabelecidas no art. 32, caput, suprimindo-se a injustificável dis- criminação fundada tão somente na espécie biológica do animal. Por fim, não há como se admitir, em relação à nova figura qualificada, o cabimento do acordo de não persecução penal - ANPP, em razão da natureza do delito e da sua manifesta contrariedade ao espírito da Lei nº 14.064/2020, que buscou justamente impedir a aplicação de medidas despenalizadoras, tornando mais severa a persecução penal e a repri- menda. Com efeito, nos termos do art. 28-A do CPP, o ANPP direciona-se para infrações penais cometidas sem violência e exige, dentre outros requisi- tos, que, no caso específico, a medida se revele necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. O instrumento alinha-se ao escopo de valorização dos instrumentos de autocomposição, nos termos estabelecidos na Resolução CNMP nº 118/2014, entendendo-se que o modelo de justiça penal negociada pode contribuir para a projeção so- cial da cultura de pacificação, da redução da litigiosidade e do estímulo às soluções consensuais, liberando a estrutura da persecução penal para os casos de maior gravidade e relevância social. Neste sentido, a finalidade do novo instituto despenalizador é incom- patível com a figura qualificada de maus-tratos, esbarrando, ainda, no requisito referente à natureza do crime (sem violência). Note-se que, di- ferentemente de outras previsões, o dispositivo não exige que se trate de crime sem violência à pessoa, de forma que não há razão para se 1 Disponível em: https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_bi- blioteca/bibli_servicos_produtos/BibliotecaDigital/Publicacoes_MP/Todas_publicacoes/Boletim%20Crimi- nal%20 Comentado%20%E2%80%93%20v.%203.pdf 654 excluir da vedação legal a prática de violência contra seres sencientes, até porque não se está diante de violência contra a coisa. Jurisprudência - Seção de Direito Criminal Significa dizer que, assim como sustentado em relação ao bem jurídico -penal, o reconhecimento do estatuto constitucional de sujeito de direitos ao animal impõe a releitura do conceito de crime praticado com violên- cia. Se a Constituição da República diz que o animal não é uma coisa, senão um ser senciente, dotado de valor e dignidade próprios, não se pode incluir a violência contra os animais na categoria de violência contra a coisa, por se tratar de interpretação contrária ao texto consti- tucional. De mais a mais, verifica-se que as razões que nortearam o legislador a proibir, de forma absoluta, o benefício do ANPP para crimes com vio- lência ou grave ameaça, encontram-se presentes na prática de violên- cia contra seres sencientes. Compreende-se, no caso, que os objetivos da justiça restaurativa não são compatíveis com atos de violência contra animais, revelando-se, para todo e qualquer caso, insuficiente para a reprovação e prevenção do crime. Em conclusão, diante da ausência de disposição expressa limitativa à violência contra a pessoa humana, deve-se compreender o conceito da prática de crime com violência, enquanto proibição de aplicação do ANPP, como aquela que envolve violência contra sujeitos de direitos, ou seja, contra seres portadores de dignidade, mormente aqueles que apresentam condição de vulnerabilidade, abrangendo, portanto, as in- frações penais com violência à pessoa humana e aos seres sencientes.” A discricionariedade regrada, objeto do precedente acima do C. Superior Tribunal de Justiça, fique claro, não autoriza o Judiciário a adotar e propor, ele próprio, o acordo de não persecução penal. Poderá, quando a recusa não estiver fundamentada em dados concretos negativos, determinar a remessa ao Procura- dor Geral de Justiça, a quem compete o reexame da questão. Mas no caso essa avaliação do Chefe do Ministério Público foi feita e é contrária à posição trazida na impetração, de sorte que, no âmbito da ação penal, não se pode pretender alterar o caminho eleito. Pode-se discordar da conclusão do Ministério Público de primeiro e se- gundo graus, vislumbrando-se, como acenado pelos Ilustres Impetrantes, con- tornos de excesso. Mas não se pode deixar de observar que os posicionamentos estão pautados em limites legais. Ressalte-se que a questão da violência retrata razão bastante para a nega- tiva do acordo negocial, ainda que pretensamente isolada e a despeito do trata- mento anterior dado à cadelinha. Não há confronto entre uma situação e outra, independentemente de que a violência seja destinada a um ser senciente e que merece proteção. Aliás, prudentemente, há vedação de proposta do ajuste em caso de infração penal exercida com violência, genericamente considerada. O argumento dos Ilustres Impetrantes impressiona pela clareza de con- ceitos quando discute a interpretação da expressão violência. Mas se a lei não Jurisprudência - Seção de Direito Criminal estende o vocábulo violência aos animais, também não obsta que se aplique a vedação ao ANPP quando a crueldade a eles for verificada, independentemente de tratar ou não de fato isolado. Dar sentido diverso a esse quadro importa em ingressar em campo impróprio, alcançando o entendimento do legislador, que se assim entendesse poderia ter acrescido à expressão violência sua destinação exclusiva a pessoas. E não o fez. Aliás, não se está afirmado que não é cabível o acordo em casos como o dos autos. É e deve ser proposto. Mas aqui há uma particularidade. A conduta foi praticada com violência, daí ter sido negado, justificadamente. Não se invade discussão acerca da ação ter sido isolada. Pelo histórico dos autos é muito provável que tenha sido mesmo, considerando, inclusive, as referências positivas postas até na manifestação do Chefe do Ministério Público. Mas o fato é que houve uma ação violenta, basta ver nos autos, que merece ser considerada na ação penal. Não se trata, de outra parte, da lei em comento prestigiar cães e gatos, desprezando violência contra os demais animais. Isso não há. E a Constituição Federal é clara a respeito. O artigo 225, § 1.º, inciso VII, proíbe práticas que submetem os animais a crueldade. E a legislação infraconstitucional também: Lei Federal 9605/98, Lei Federal 14064/20, Lei Federal 11794/2008, Lei Fede- ral 5197/67, Lei Estadual 11977/2005, Lei Estadual 17497/2021, por exemplo. Mas não se pode desconsiderar que cães e gatos mereceram uma atenção especial do legislador em razão do volume extraordinário de eventos cruéis. E disso todos sabemos. De outra parte, é opção do legislador, e o tema deve ser tratado nas Câ- maras Altas, definir se animais submetidos a maus tratos devem ser tutelados no âmbito penal. E meu entendimento é que sim. E a dialética acerca da colocação da vida humana e da vida animal no mesmo patamar de importância deve ser tratada na Academia. Assim, respeitado o entendimento apresentado pelos Dignos Impetrantes, forte na argumentação e no bom senso, não há se cogitar de trancamento da ação penal por ausência de justa causa. O não oferecimento de Acordo de Não Persecução Penal pelo Ministério Público, ratificado após revisão pelo órgão superior, repito, mostra-se ampla- mente fundamentado e revestido de legalidade. Além do crime apurado possuir, como elementar, o emprego de violência, fato que, por si só, já inviabilizaria o oferecimento do ANPP, o Parquet entendeu, no limite de sua discricionariedade, que o acordo se mostra insuficiente no tocante à reprovação e prevenção do de- lito, pelos motivos supracitados, respeitando, dessa forma, a previsão do artigo 28-A, do C. P. Penal. De mais a mais, a aferição da suposta ausência de justa causa para a pro- Jurisprudência - Seção de Direito Criminal positura da ação penal ou da queixa-crime só pode ser levada a cabo quando prescindível a realização de exame acurado do contexto probatório coligido, dados os estreitos limites dessa via constitucional, ou se evidente atipicidade do fato, o que não ocorre no caso. Dessa forma, diante da observância dos requisitos legais pelo Ministé- rio Público e respeitados os limites do controle de legalidade adstrito ao Poder Judiciário, a questão demanda o prosseguimento da ação penal, não se vislum- brando, por ora, o alegado constrangimento ilegal, louvando-se, é preciso dizer, o trabalho trazido à discussão. Pelo meu voto, pois, DENEGO A ORDEM. Comunique-se imediata- mente ao E. Juiz de Direito.