Decisão 2153149-50.2021.8.26.0000

Processo: 2153149-50.2021.8.26.0000

Recurso: Apelação

Relator: ENIO ZULIANI

Câmara julgadora: Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de

Data do julgamento: 24 de julho de 2025

Ementa Técnica

APELAçãO – Fraude de credores (art. 158 do CC) eviden- ciada por provas idôneas e irrefutáveis. A devedora, pelos seus sócios (o casal), celebrou, após constituir dívida, atos de desvio de bens de seu patrimônio que era a garantia dos credores, constituindo uma socie- dade empresária fictícia para integralizar no capital social três imóveis, o que, em princípio, é lícito. Toda- via, em ato subsequente, essa participação societária foi transferida para o filho, o que implica desapare- cimento patrimonial malicioso. Insolvência notória e insignificância financeira do escasso bem residual, incapaz de atuar para satisfação da somatória de dí- vidas. O consilium fraudis é presumido pela ligação familiar e cumplicidade de propósito e não foi objeto de contraprova. Retorno dos bens como se nada tives- se ocorrido para o direito da credora (volta do status quo ante). Não provimento.(TJSP; Apelação 2153149-50.2021.8.26.0000; Relator: ENIO ZULIANI; Órgão Julgador: Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de; Data do Julgamento: 24 de julho de 2025)

Voto / Fundamentação

, em 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso. V.U. SUSTENTOU ORALMENTE O ADVOGADO OLAVO SALOMÃO FERRA- 1 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. I. 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1940, p. 339. RI, OAB/SP 305.872”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. (Voto nº 95.104) O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores CARLOS Jurisprudência - Direito Privado CASTILHO AGUIAR FRANÇA (Presidente sem voto), ALCIDES LEOPOL- DO e MARCIA DALLA DÉA BARONE. São Paulo, 24 de julho de 2025. ENIO ZULIANI, Relator


Ementa: Fraude de credores (art. 158 do CC) eviden- ciada por provas idôneas e irrefutáveis. A devedora, pelos seus sócios (o casal), celebrou, após constituir dívida, atos de desvio de bens de seu patrimônio que era a garantia dos credores, constituindo uma socie- dade empresária fictícia para integralizar no capital social três imóveis, o que, em princípio, é lícito. Toda- via, em ato subsequente, essa participação societária foi transferida para o filho, o que implica desapare- cimento patrimonial malicioso. Insolvência notória e insignificância financeira do escasso bem residual, incapaz de atuar para satisfação da somatória de dí- vidas. O consilium fraudis é presumido pela ligação familiar e cumplicidade de propósito e não foi objeto de contraprova. Retorno dos bens como se nada tives- se ocorrido para o direito da credora (volta do status quo ante). Não provimento.





VOTO

Vistos. Publicou o Juízo da 2ª Vara de Bebedouro a sentença de fls. 626-631, pela qual foi reconhecida que atos jurídicos foram celebrados em fraude de credo- res (art. 158 do CC), seguindo respectivas anulações de registros das matrícu- las 882, do Cartório de Guariba, 7677, do Cartório de Bebedouro e 39.832, do Cartório de Ribeirão Preto. Os destinatários do decisum recorreram em petição encabeçada por SERGERAL INDÚSTRIA METALÚRGICA LTDA. e após um incidente sobre preparo recursal (com guia recolhida) cumpre ao Tribunal de Justiça de São Paulo, pela sua Quarta Câmara de Direito Privado, analisar os termos da irresignação, em virtude de prevenção registrada pelo anterior re- curso (AgInt. 2153149-50.2021.8.26.0000), que precede aquele examinado na 17ª Câmara de Direito Privado às fls. 602-603. Em termos de prevenção e pela anterioridade do primeiro recurso, a competência é da Quarta Câmara de Direito Privado (art. 105 do Regimento Interno). Registre-se, para fechar essa questão, 248 que o Acórdão da Décima Sétima Câmara confirmou a tutela de urgência emiti- da para bloquear as matrículas. Os recorrentes iniciam afirmando que a autora da ação (LEGACY Se- curitizadora de Créditos Comerciais S.A.) não era credora para ter legitimidade Jurisprudência - Direito Privado de atuar contra supostas fraudes pretéritas (art. 158, § 2º, do CC); invalidade da cessão pela não notificação ao cedido, nos termos do art. 290 do CC; falta de interesse de agir devido ao crédito estar garantido na execução 1005977- 29.2020.8.26.0624; nulidade por cerceamento do direito de provar a inocorrên- cia de fraude; falha no requisito “anterioridade” do crédito e abordagem da natu- reza do negócio de conversão de imóveis em quotas sociais e que a MJV surgiu livre de vícios na sua constituição, inclusive porque o crédito não existia e que não fecha o pressuposto eventus damni pelo fato de ter sido penhorado o imóvel (valioso) sede da apelante Sergeral (matriculas 18167 e 18166 de Ribeirão Pre- to). Sobre o consilium fraudis o recurso foca a impossibilidade de conluio entre pessoa jurídica não constituída, sendo mencionado o art. 164 do CC (presumida boa-fé) e que, acaso mantida a sentença, que seja modulada de forma a recair o peso da nulidade sobre a doação das quotas e não sobre a integralização dos bens ao capital social da empresa MJV pelos devedores Valter e Maria José. Também e prosseguindo quanto a modulação, consideram exagerada e errada a capitulação, porque não seria anulação, mas, sim, ineficácia perante o credor e nos limites do crédito que existia ao tempo do ato declarado fraudulento. Há preliminar de intempestividade nas contrarrazões (fls. 738). A recor- rida sustenta o acerto da sentença e refuta toda a argumentação deduzida pelos apelantes. É o relatório. Antes de serem apresentadas as razões sobre os pressupostos de fraude de credores, tal como exigido pelo art. 158 do CC, recomendável deixar claro que as duas preliminares (uma da recorrida sobre tempestividade recursal e a outra dos recorrentes sobre cerceamento do direito de produzir provas) são infunda- das. A tese de que embargos declaratórios não interrompem o ciclo do prazo de apelação não é uma unanimidade e acolher esse princípio, que encurta o período e surpreende aquele que exerce uma faculdade legítima (de recorrer) seria o mesmo que fragmentar o acesso à ordem jurídica justa (art. 5º, XXXV, da CF). O recurso está no prazo, conforme consta de fls. 650. Não existe, no caso em apreço, oportunidade para prova oral, data vênia, pelo que o julgamento fina- lizado após encartados os documentos que descortinam a relação jurídica com contornos explicados pelas provas, é adequado e em sintonia com os dizeres do art. 6º do CPC e 5º, LXXVIII, da CF (duração razoável do processo) e, prin- cipalmente, art. 355, I, do CPC, sem arranhar o disposto no art. 5º, LV, da CF. Imperioso rechaçar essas propostas que buscam impedir o reexame da matéria de fundo. A fraude de credores é um dos vícios mais impertinentes e ameaçadores da segurança jurídica baseada no patrimônio do devedor, eixo da responsabili- dade que ornamenta o Direito das Obrigações. E, apesar de velha a fraude - tem Jurisprudência - Direito Privado referência em carta de Cícero sobre a questão, o que permitiu situar que sua admissibilidade remonta antes de 689 a.u.c. (HAHNEMANN GUIMARÃES, Revogação dos actos praticados em fraude de credores segundo o Direito Ro- mano, RJ, Typ. Encadernadora, 1930, p. 13), continua sendo desafiadora pela capacidade criativa dos fraudadores. Embora o devedor “tenha plena liberdade de contratar e, por conseguinte, de alienar seus bens, com o único limite de não serem as alienações feitas com conhecimento do prejuízo que se vai causar aos credores por falta de outros bens capazes de garantir-lhes a satisfação de seus direitos” (palavras de LIEBMAN, Processo de Execução, Saraiva, 3ª edição, 1968, p. 83, item 44). A lei protege “o crédito” contra “la riduzione artificiale o patologica del patrimonio del debitore” e não contra o risco natural e fisiológico da sua insuficiência (FRANCESCO CARNELLUTTI, Processo di Esecuzione, Padova, CEDAM, 1932, vol. I, p. 209, § 106). O art. 391 do CC é categórico em afirmar que pelo inadimplemento “to- dos os bens do devedor respondem” e a importância do princípio pode ser con- firmada com a redação repetitiva do art. 789 do CPC. O credor possui mais do que expectativas de que seu crédito será satisfeito com o patrimônio do devedor, caso ocorra falha de pontualidade no cumprimento, de forma que alienações ou transferências que eliminem o poder de solvabilidade previsível pelo con- junto de bens constitui uma ruptura do encadeamento de princípios. O vazio patrimonial não frustra somente o credor que se surpreende com a falta de bens penhoráveis, porque tal vácuo repercute de forma drástica na confiabilidade ins- titucional do Judiciário, encarregado da execução forçada. A fraude de credores representa um vício que contamina os atos de evasão patrimonial e tal como a fraude de credores, compromete a função de garantir ao credor um mínimo de moralidade no controle dos bens suscetíveis de alienação ou conversão em capital social. O proprietário tem direito de integralizar imóveis que estão em seu nome, no registro imobiliário, como parte do capital social de uma sociedade empre- sária e ainda que o domínio passe para a sociedade, poderá o credor alcançá-los em caso de esvaziamento patrimonial do devedor. A fraude ocorre quando, por meio da integralização (e foi o que ocorreu) os proprietários, em segundo etapa de providências maliciosas, se retiram da sociedade em que os imóveis foram integralizados, transferindo as cotas ou ações para os filhos, excluindo, com isso, a garantia dos credores. ALBERTO MAFFEI ALBERTI escreveu que exa- tamente nesse ponto incide a revocatória para resgate do patrimônio ou quando “representare una lesione della garanzia patrimoniale, dal momento che il bene non è piu soggetto all´azione executiva del creditore” (Il danno nella revocato- 250 ria, Padova, CEDAM, 1970, p. 26). Quando o art. 158, § 2º, do CC, situa a anterioridade do crédito como requisito de configuração da fraude dilapidadora de bens do devedor, não está querendo isolar, na cadeia de transmissões legítimas do crédito pendente, o últi- Jurisprudência - Direito Privado mo (ou a cessão para a autora da ação), mas, sim, dar importância ao que se pode denominar nascimento (ou constituição) do vínculo obrigacional (a dívida). O que importa é a data em que os requeridos assumiram o dever de pagar e isso ficou claro pelo contrato de cessão, de 30-5-2019 (fls. 77-93), ocasião em que a Sergeral cedeu os créditos e assumiu, com solidariedade das pessoas físicas, a responsabilidade. A transmissibilidade subsequente (cessões praticadas pelas empresas do setor de securitização) não cria obrigação nova ou muda a data da dívida que de- veria ser paga pelo devedor. Representa uma mudança de titularidade da figura do credor e mais nada em termos de estrutura obrigacional. Resulta que o crité- rio da anterioridade da dívida respondeu estar presente e não houve, no julgado em análise, ofensa ao sentido do § 2º, do art. 158 do CC. A autora, pelo art. 286 do CC, incorporou todos os direitos decorrentes do crédito cedido, inclusive a faculdade de impugnar atos fraudulentos, sendo certo que a notificação (art. 290 do CC) perdeu o seu sentido vocacional ou meio de orientar o devedor a quem deve pagar. Ora, se o devedor tem pleno conhecimento da atual titularidade do crédito e nada satisfaz, seja diante do credor originário, seja para o cessionário (apelada), o aviso para identificar o destinatário do pagamento não serve para mais nada, a não ser para justificar o que é inadmissível: o inadimplemento. Os demais pontos do recurso são, igualmente, infundados. A dinâmica da circulação registral dos três imóveis já denuncia o propósito malicioso que ca- racteriza má-fé dos envolvidos, sendo que os três personagens estão irmanados na cumplicidade engendrada para eliminar da credora a possibilidade de excutir patrimônio dos devedores. Veja-se que os devedores Valter Lanca Silvio e Ma- ria José Ornellas Lanca Silvio constituíram uma sociedade empresária (MJV Intermediação de Negócios) e integralizaram tais propriedades no capital social para, em seguida, cederem (doarem) as suas participações (quotas) para o filho deles, Thiago Ornellas Lança Silvio. Essas rotações não são onerosas, mas, sim, desprovidas de comutatividade, representando um itinerário fraudulento e que conspira contra a legalidade que poderia brotar de atos com formalidades cum- pridas. Não decorre, da integralização de quotas sociais com imóveis, função social produtiva ou personificação jurídica e econômica de uma empresa volta- da para fomentar a livre concorrência e ativar o comércio para gerar trabalho e corrente de serviços ou mercadorias, mas, sim, uma empresa fantasma ou criada para desviar os bens da excussão que se avizinhava. A doutrina coloca essa espécie de ato como revogável, diante da má-fé, como uma alienação qualquer (ANTONIO BUTERA, Dell´Azione Pauliana o Revocatoria, Torino, Editrice Torinese, 1934, p. 187, § 50). Os juízes já analisaram casos em que os pais, quando devedores mal-in- tencionados, utilizaram do mesmo expediente para inscrever bens em nome Jurisprudência - Direito Privado dos filhos, aproveitando de uma personificação maliciosa de pessoa jurídica, tal como foi redigido pelo Ministro Herman Benjamin, no Resp. 1429023 SC, DJ de 17.12.2021: “Confirmam as evidências ainda, o endereço da sede da pessoa jurídica, que corresponde àquele declinado por Wilson Kohlbach na declaração de ajuste anual (pessoa física) do ano de 1995 como sendo da sua residência (ou seja, a empresa não teve estabelecimento próprio, tendo sido criada exclusivamente para a finalidade acima suscitada); e as declarações apresentadas pelo contribuinte nos exercícios de 1992 a 1995; de fls. 299-330 do Anexo 02, que apresentam o histórico do seu patrimônio pes- soal, demonstrando o esvaziamento em proveito da ré. Pelo exposto, a própria criação da empresa BIBI Empreendimentos e Participações Ltda. e a consequente transferência do patrimônio pessoal do réu Wilson Kohlbach a título de integralização do capital e, posteriormente, doação aos seus filhos na forma de cotas sociais, são atos maculados por vício (fraude), pois que atenderam à finalidade imprópria (liberar os bens com- prometidos com o pagamento da dívida), desvirtuando o escopo da lei, devendo ser tornados ineficazes em com relação à Fazenda Nacional”.” Portanto, corretíssima a sentença. Entre pais e filho a concretude de frau- de contra credores ou à execução é mais fácil de ser planejada, pela união de propósitos conspiratórios estimulada pela notoriedade da insolvência (âmbito familiar), sendo que, no caso em apreço, o objetivo de isolar os três imóveis em nome do filho se deu por intermédio de uma fantasiosa constituição de so- ciedade, com maliciosa integração imobiliária no capital e, finalmente, cessão das quotas para o favorecido. O credor que acreditar na normalidade dessa mo- vimentação estranha e artificial vai ficar sem garantia na execução e não foi o que ocorreu com credora que, oportunamente, tomou iniciativa de restaurar o patrimônio com resgaste dos bens desviados. O inadimplemento da devedora é um fator incontroverso e a alegação de existir possibilidade de penhora produtiva não passa de especulação de devedor de má-fé, pois para o credor não existe garantia sólida diante do volume de dí- vidas que são exigíveis e que teriam em mira de excussão o mesmo imóvel. A insuficiência é manifesta e esse argumento não elimina a fraude que necessita de ser combatida em virtude do princípio da boa-fé (art. 422 do CC) e da regu- laridade (eficácia) dos autos jurídicos, sendo importante registrar que o conceito do eventus damni não é exclusividade de devedor que esgota o patrimônio com alienações inescrupulosas, mas, sim, contra aquele que diminui, sensivelmente, a garantia patrimonial (GIOVANNI PACCHIONI, Delle Obbligazioni in Gene- rale, 2ª edição, Padova, CEDAM, 1935, vol. I, p. 85). Os apelantes afirmam que existe dúvida sobre o efeito da sentença e não existe incerteza. A fraude, proclamou ALVINO LIMA “é a antítese do direito, 252 deve ser punida com o máximo rigor, não só com o fim de impedir que se possa burlar a eficácia integral do texto legal, mas ainda como um exemplo que deve influir nos que alimentam o desejo de auferir proventos pondo em prática meios desonestos” (“A interferência de terceiros na violação do contrato”, in Coletâ- Jurisprudência - Direito Privado nea Comemorativa do Cinquentenário da Revista dos Tribunais, 1962, p. 20). A ineficácia dos atos encadeados para prejudicar o mínimo representa o resultado desejado. O efeito da ação revocatória é o de tornar ineficaz os atos fraudulentos, resgatando o patrimônio da devedora para o retorno ao status quo ante e apro- veitamento pelo credor que tomou a iniciativa, visando satisfazer a dívida exe- cutada e que paira no vácuo por falta de bens penhoráveis, com todos os seus acréscimos legais (LUIZ DA CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, SP, Max Limonad, 1956, vol. 5, tomo II, p. 921, § 774 e GUIDO ALPA, Ma- nuale di Diritto Privato, 10ª edição, 2017, CEDAM, p. 852). O credor vitorioso na ação pauliana adquire uma garantia especial, segundo MENEZES CORDEI- RO: “Ele dispõe da garantia geral, relativamente aos demais bens do devedor, concorrendo em igualdade com os diversos credores; e, passa a dispor de uma garantia especial, centrada no bem indevidamente alienado” (Tratado de Direito Civil, Direito das Obrigações, vol. X, Almedina, 2015, p. 389, § 185). Isto posto, nega-se provimento, sem alteração de verba honorária (fixada no máximo na respeitável sentença que se confirma).