Órgão julgador: Turma, j. 01.03.2016; STJ, REsp n. 1.836.912/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 20.10.2020.
Data do julgamento: 11 de novembro de 2025
Ementa
EMBARGOS – DIREITO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE COLETIVO POR ADESÃO. RESCISÃO UNILATERAL. MANUTENÇÃO DOS SERVIÇOS DE ASSISTÊNCIA MÉDICA. PARCIAL ADEQUAÇÃO.
I. CASO EM EXAME
1. Apelações cíveis contra sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos para condenar a operadora de plano de saúde e a administradora de benefícios à manutenção do plano de saúde contratado pelo autor, mediante pagamento da contraprestação, sob pena de multa diária.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO
2. Há cinco questões em discussão: (i) saber se a operadora de plano de saúde faz jus à gratuidade da justiça; (ii) saber se é necessária a conversão do
(TJSC; Processo nº 5000347-21.2024.8.24.0144; Recurso: embargos; Relator: Desembargador EDUARDO GALLO JR.; Órgão julgador: Turma, j. 01.03.2016; STJ, REsp n. 1.836.912/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 20.10.2020.; Data do Julgamento: 11 de novembro de 2025)
Texto completo da decisão
Documento:6842316 ESTADO DE SANTA CATARINA TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apelação Nº 5000347-21.2024.8.24.0144/SC
RELATOR: Desembargador EDUARDO GALLO JR.
RELATÓRIO
F. G., representado por M. F. B., propôs "ação de obrigação de fazer", perante o Juízo da Vara Única da Comarca de Rio do Oeste, contra S. A. D. B. S. S., U. M. C. C. T. M. e A. A. D. B. S. P.
Na inicial, narrou ser beneficiário de plano de saúde coletivo por adesão mantido pela operadora ré e administrado pelas administradoras requeridas, bem como ter sido diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista - TEA (CID F84.0), cujo tratamento inclui acompanhamento com equipe multidisciplinar de fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicólogo e demais especialidades. Sustentou que em 20/03/2024, recebeu a informação sobre o cancelamento unilateral por parte da operadora do plano de saúde do contrato celebrado com a administradora, a partir do dia 10/04/2024. Afirmou que não foi respeitado o prazo mínimo de 60 dias de antecedência da comunicação de cancelamento, além de não ter sido oferecida possibilidade de continuação. Aduziu que, com o cancelamento, teria de celebrar novo contrato, dependendo do aceite da operadora, com o dobro do valor mensal que vinha pagando, além de ter de cumprir novos prazos de carência devido à preexistência de doença/condição de saúde.
Defendeu a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, a necessidade de observar o prazo mínimo de 60 dias antes de efetivar o cancelamento do plano em caso de rescisão do contrato coletivo, bem como a impossibilidade de rescisão do contrato durante o tratamento médico, mediante interpretação extensiva do art. 13, III, da Lei 9.656/98. Aduziu que a situação se trata de retaliação à demanda nº 5000704-35.2023.8.24.0144, em que pleiteia que a requerida seja condenada ao fornecimento do tratamento prescrito. Ressaltou que a rescisão unilateral do contrato enquanto o paciente está em tratamento médico caracteriza desvantagem exagerada ao consumidor, viola a boa-fé objetiva e a função social do contrato, razão pela qual deve ser coibida. Postulou pela consignação do valor das mensalidades em juízo e pela concessão da tutela de urgência para que as rés se abstenham de rescindir o plano de saúde, sob pena de multa.
Ao final, requereu a gratuidade da justiça e a procedência dos pedidos, para que as requeridas sejam condenadas a manter o plano nas condições atuais até a alta médica ou oferecer solução que não interrompa o tratamento médico (evento 1, DOC1).
Determinada a comprovação da hipossuficiência (evento 5, DOC1), a parte autora recolheu as custas.
O juízo determinou a intimação da autora para esclarecer a presença de interesse processual, tendo em vista que a rescisão unilateral do contrato já foi comunicada na demanda de n. 5000704-35.2023.8.24.0144 (evento 17, DOC1).
O autor defendeu a presença de interesse processual, tendo em vista que o objeto das demandas é distinto e postulou pela análise do pedido de tutela de urgência (evento 22, DOC1).
Deferida a tutela de urgência para determinar a manutenção do plano de saúde, sob pena de multa (evento 24, DOC1).
Citada, a requerida A. A. D. B. S. P. L. apresentou contestação, alegando, preliminarmente, a ilegitimidade passiva, considerando que é mera administradora de benefícios, impossibilitada de prestar serviços de assistência médica, e que a única responsável pela ativação do plano de saúde do autor é a operadora do plano.
No mérito, narrou que em 11/03/2024 foi notificada pela operadora do plano de saúde acerca da rescisão unilateral dos contratos de plano de saúde dos beneficiários de sua carteira, prevendo como data final o dia 10/04/2024. Disse que enviou contranotificação, defendendo a necessidade de cumprimento dos prazos contratuais, especialmente diante do risco assistencial aos beneficiários em tratamento, mas a operadora manteve sua postura, conduta ilegal que infringe normas da agência reguladora e caracteriza má-fé. Argumentou que não tem responsabilidade pela propositura da demanda, tendo em vista que não mediu esforços para assegurar o direito dos beneficiários perante a operadora
Alegou que a operadora ainda publicou em seu site informações falsas, atribuindo à administradora a responsabilidade pela cobertura assistencial após a rescisão unilateral, e que, no tocante à data do pedido de cancelamento, descumpriu os prazos, ressaltando que a notificação de 15/12/2023 foi revogada e seguida de reajuste dos valores contratuais. Aduziu que foi realizada reunião entre a ANS e as requeridas, em que foi consignada a obrigatoriedade de manutenção de assistência e portabilidade aos beneficiários do plano de saúde, mas que a operadora se nega a cumprir as determinações.
Defendeu a responsabilidade integral da operadora requerida pelos prejuízos causados ao autor, pois a administradora não pode prestar assistência médica ou oferecer contratos de plano de saúde. Reiterou a responsabilidade da operadora pela garantia de atendimento aos beneficiários do plano de saúde mesmo em caso de rescisão do contrato e disse que a ausência de disponibilização de plano em modalidade individual ou familiar ofende normas do CONSU. Aduziu que também incumbe à operadora garantir o exercício da portabilidade das carências e que não pode ser responsabilizada por eventual dano moral. Pugnou pelo reconhecimento da ilegitimidade passiva, ou pela improcedência dos pedidos em relação à administradora e procedência quanto à operadora do plano de saúde (evento 47, DOC1).
Por sua vez, a operadora de plano de saúde requerida U. M. C. C. T. M. L. também apresentou contestação, alegando que não possui vínculo direto com a parte autora, beneficiária de plano de saúde coletivo por adesão. Argumentou que essa modalidade admite a rescisão unilateral, que foi oferecido ao beneficiário o direto à portabilidade, além de obedecidos os prazos estabelecidos na lei e contrato, bem como que o dever de assegurar a continuidade de assistência se refere a situações agudas, como são os casos de internação em UTI, não se aplicando ao caso do requerente. Defendeu sua ilegitimidade passiva, tendo em vista que a relação da requerente é com a administradora de benefícios, que se comprometeu a prestar os serviços de saúde independentemente de qual operadora seria prestadora do serviço.
No mérito, reiterou a ausência de vínculo contratual com o beneficiário, uma vez que a cartela de clientes pertence à administradora de benefícios, sendo que figurou nessa posição a ré S. A. D. B. S. S. até 01/07/2023, quando foi cedida à requerida A. A. D. B. S. P. L. Afirmou que foi inserida em regime de Termo de Assunção de Obrigações Econômico-Financeiras (TAOEF) e Plano de Recuperação Assistencial (PRASS) com previsão de 48 meses, e que a continuidade do contrato com a administradora de benefícios pode acarretar no comprometimento da qualidade dos serviços prestados e perda da oportunidade oferecida pela ANS. Sustentou que a rescisão unilateral do contrato só é vedada em planos de saúde individuais ou familiares, e que não pode ser obrigada a manter indeterminadamente contrato contrário aos seus interesses. Aduziu que foi obedecida a exigência de aviso prévio de 60 dias com a notificação enviada em 15/12/2024, ratificada posteriormente, em 11/03/2024, bem como oferecido o direito à portabilidade pela parte autora, cabendo à administradora direcionar seus clientes para operadora com qual mantenha vínculo contratual. Sustentou que possui planos individuais e familiares ativos, com abrangência geográfica estadual no Estado de Minas Gerais e regional nos municípios do Norte de Minas, mas está impedida de comercializar plano de saúde fora da sua área de atuação. Concluiu que, em que pese a incidência do CDC, é incabível a inversão do ônus da prova de forma automática, cabendo à parte autora demonstrar os fatos constitutivos do seu direito. Postulou pela improcedência (evento 51, DOC2).
A ré S. A. D. B. S. S. também apresentou contestação, alegando preliminarmente a sua ilegitimidade passiva, tendo em vista que cedeu toda a carteira de clientes em favor da corré A. A. D. B. S. P. L., com anuência da parte requerente. Sustentou ser incabível a inversão do ônus da prova, cabendo à parte autora demonstrar a falha na prestação de serviços pela ré ou a impossibilidade na obtenção dos meios indispensáveis a provar seu direito. Impugnou o pedido de gratuidade da justiça. No mérito, alegou a ausência de responsabilidade civil, tendo em vista que não é mais gestora do plano de saúde em questão, de modo que não há qualquer defeito na sua prestação de serviços, não possuindo nenhuma relação com os fatos alegados. Postulou pela improcedência (evento 67, DOC1).
Réplica ofertada, em que o autor noticiou o descumprimento da medida liminar, tendo em vista que a administradora de benefícios requerida deixou de enviar os boletos para pagamento do plano de saúde. Rebateu a preliminar de ilegitimidade passiva da ré A. A. D. B. S. P. L., porquanto possui atribuições contratuais essenciais para a continuidade do plano de saúde, além de ser solidariamente responsável perante o consumidor. No mérito, afirmou que a administradora, ao atuar como intermediação na contratação do plano de saúde, compromete-se com a continuidade dos serviços, cuja interrupção pode gerar risco significativo à saúde. Defendeu que devem ser presumidas verdadeiras as alegações não impugnadas pela parte ré (evento 72, DOC1).
Quanto à contestação da operadora de plano de saúde, alegou que é destinatário final dos serviços de assistência à saúde prestados, de modo que as partes mantém sim relação jurídica, de natureza consumerista. Afirmou que foi informado da rescisão unilateral do contrato apenas 21 dias antes do efetivo cancelamento, sendo que foi descumprido o prazo mínimo de 60 dias para possibilitar a contratação de outro plano de saúde, além de não ter sido oportunizada migração para plano na modalidade individual ou familiar, sem cumprimento de novos prazos de carência. Defendeu que é pacífico na jurisprudência que as operadoras de plano de saúde não podem romper o contrato de prestação de serviços de paciente durante tratamento médico. Defendeu que é aplicável a inversão do ônus da prova e devem ser presumidas verdadeiras as alegações não impugnadas pela parte ré (evento 73, DOC1).
Intimadas as partes acerca das provas que pretendiam produzir, o autor postulou pelo julgamento antecipado do feito (evento 84, DOC1), assim como a operadora e administradora rés (evento 86, DOC1 e evento 87, DOC1).
A requerida A. A. D. B. S. P. L. se manifestou, alegando que, no despacho de nº 53, a ANS reconheceu a responsabilidade exclusiva da operadora por infrações administrativas, além de ressaltar a ausência de obrigação da administradora quanto à obrigação de prestar coberturas assistenciais e de responder financeiramente pelas despesas assistenciais dos beneficiários (evento 95, DOC1).
O autor se manifestou (evento 102, DOC1).
Na sentença, a Dra. Caroline Antunes de Oliveira julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais, nos termos do dispositivo a seguir transcrito:
Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE a pretensão formulada, extinguindo-se o feito com resolução do mérito (art. 487, I, do CPC), a fim de:
a) CONFIRMAR a tutela provisória de urgência deferida nestes autos (Ev. 05) e CONDENAR a parte ré à manutenção do plano de saúde contratado pelo autor, mediante a contraprestação tal como devida no contrato, devendo ser observada a divisão de competências inerente à condição de administradora e operadora do plano de saúde, ficando a ré ALLCARE ADMINISTRADORA DE BENEFÍCIOS SÃO PAULO LTDA responsável pela gerência administrativa e emissão dos boletos mensais, e a ré UNIMED MONTES CLAROS COOPERATIVA TRABALHO MEDICO LTDA pela manutenção do plano coletivo de saúde, até a data de alta do tratamento indicado na inicial, sob pena de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais) para cada requerida, limitada ao total individual de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).
Ainda, como contracautela, deverá a parte autora demonstrar a cada 3 meses a necessidade do tratamento, mediante a apresentação de receituário médico.
b) CONDENAR a parte ré ALLCARE ADMINISTRADORA DE BENEFÍCIOS SÃO PAULO LTDA e UNIMED MONTES CLAROS COOPERATIVA TRABALHO MEDICO LTDA ao pagamento da multa diária fixada pelo descumprimento da decisão concessiva da tutela de urgência (Ev. 24), em montante a ser apurado na fase de liquidação de sentença.
Outrossim, EXTINGO o feito em relação à ré Servix Administradora de Beneficios Sociedade Simples, sem resolução do mérito (art. 485, VI, do CPC), diante da ilegitimidade passiva da parte.
Assim, condeno o autor ao pagamento de 30% das despesas processuais, enquanto as rés Allcare Administradora de Benefícios São Paulo LTDA. e Unimed Montes Claros Cooperativa Trabalho Medico LTDA. arcarão com os 70% remanescentes. Os honorários advocatícios de sucumbência são devidos pelos réus supracitados em favor da parte autora na proporção de 10% do valor da condenação (art. 85, § 2º, do CPC).
Lado outro, fixo os honorários devidos pelo autor à demandada Servix Administradora de Benefícios Sociedade Simples em R$ 1.000,00, na forma do artigo 85, § 8º, do CPC (evento 111, DOC1).
A administradora de benefícios (evento 129, DOC1), o autor (evento 141, DOC1) e a operadora de plano de saúde (evento 142, DOC1) apresentaram embargos de declaração, os quais foram rejeitados (evento 171, DOC1).
Irresignada, a operadora de plano de saúde interpôs apelação cível. Alega, em suas razões, que: (i) plano de saúde da parte autora foi contratado na modalidade coletivo por adesão, de modo que não há relação direta entre o consumidor e a operadora, apenas com a administradora de benefícios; (ii) às administradoras de benefícios incumbe as atribuições de negociação de reajuste e alteração da rede assistencial; (iii) o rompimento de vínculo contratual entre as requeridas obedeceu as normas legais e contratuais, uma vez que apenas é vedada a rescisão unilateral imotivada em caso de planos de saúde individuais ou familiares; (iv) foi encaminhada ao beneficiário carta de portabilidade de modo a possibilitar a migração para outro plano de saúde, e não há qualquer prova do encerramento do contrato entre o autor e a administradora de benefícios; (v) comprovou a denúncia do contrato à administradora com antecedência mínima de sessenta dias, cabendo à corré promover a migração para outro plano coletivo ou oferecer plano individual ou familiar; (vi) a administradora de benefícios deve realizar a mudança da operadora de plano de saúde, tendo em vista que a apelante não dispõe de plano individual com abrangência nacional para possibilitar a migração do autor; (vii) em caso de manutenção da sentença, deve ser estabelecido prazo razoável para obrigação de manutenção do plano de saúde, tendo em vista que a condição do autor é permanente e exige tratamento contínuo e por tempo indeterminado.
Postulou pelo deferimento da gratuidade da justiça e pelo provimento do recurso e reforma da sentença, para que sejam julgados improcedentes os pedidos (evento 183, DOC1).
Contrarrazões apresentadas (evento 205, DOC1 e evento 206, DOC1).
Por sua vez, a administradora de benefícios, em suas razões de apelação, alega que: (i) a ANS determinou a instituição de Direção Técnica à operadora requerida em razão da prática continuada de abusividades, devendo a diretora nomeada ser intimada para tomar as providências necessárias para garantir o restabelecimento do plano de saúde pelo autor; (ii) a competência para reativar o plano de saúde do autor é exclusiva da operadora, tendo em vista que o contrato não está mais vinculado na base de beneficiários da apelante em razão da rescisão unilateral promovida pela corré; (iii) buscou garantir a manutenção dos serviços aos beneficiários vinculados à carteira de clientes, mas a operadora manteve sua posição; (iv) a corré veiculou informações falsas em seu site, no sentido de que cabia à administradora garantir a cobertura assistencial aos beneficiários que tiveram seus planos de saúde cancelados; (v) a operadora enviou notificação extrajudicial em 15/12/2023 acerca da rescisão, mas após negociações, foi cancelada em meados de janeiro de 2024; (vi) a ANS reconheceu a violação de dispositivos regulatórios pela operadora ré, e a ausência de responsabilidade da administradora pelos casos de rescisão em massa; e (vii) incumbe exclusivamente à corré o cumprimento da sentença, pois é a única operadora de plano de saúde na relação jurídica, de modo que apenas ela possui a atribuição de dar cobertura assistencial.
Ao final, pugnou pelo provimento do recurso e reforma da sentença, para que sejam os pedidos julgados improcedentes e afastada a obrigação fixada em face da apelante (evento 194, DOC1).
Contrarrazões apresentadas (evento 207, DOC1 e evento 208, DOC1).
Lavrou parecer pela Douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Fábio de Souza Trajano, que se manifestou pelo conhecimento e desprovimento dos recursos (evento 15, DOC1).
Determinei a comprovação da hipossuficiência alegada pela operadora de plano de saúde (evento 17, DOC1), tendo a interessada peticionado nos autos (evento 23, DOC1).
Este é o relatório.
VOTO
Os recursos mereces ser conhecidos, porquanto preenchidos os pressupostos de admissibilidade.
1. Da justiça gratuita.
No caso concreto, o pedido de justiça gratuita foi formulado por pessoa jurídica de direito privado, em relação a quem a declaração de hipossuficiência não produz presunção relativa de veracidade, como ocorre com as pessoas naturais (art. 99, § 3º, do CPC), cabendo a elas, portanto, o ônus de demonstrar a necessidade do benefício (súmula nº 481 do STJ).
E, compulsando os autos verifico que a diretora fiscal nomeada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar elaborou relatório em que descreve situação de grande fragilidade financeira da apelante, com sérios desequilíbrios e incapacidade da operadora de plano de saúde de honrar com seus compromissos (evento 208, DOC2):
Com base na análise preliminar dos documentos e informações apresentadas, é possível concluir que a Unimed Montes Claros tem enfrentado um cenário crítico de crise financeira e contábil, agravado por uma relação contratual com as administradoras de benefícios SERVIX e, posteriormente, ALLCARE. A migração da carteira de beneficiários, inicialmente planejada para aliviar os custos assistenciais e realocá-los para as regiões compatíveis com sua área de atuação, resultou em inadimplência significativa por parte da ALLCARE, ultrapassando R$ 60 milhões, comprometendo ainda mais a saúde financeira da operadora.
Diante da inadimplência e da quebra contratual, a Unimed decidiu pela rescisão dos contratos de forma transparente e em conformidade com a legislação vigente, inclusive mantendo a assistência aos beneficiários e informando adequadamente as partes envolvidas. No entanto, a reação da ALLCARE – notificando diretamente os beneficiários – desencadeou uma série de ações judiciais, gerando um grande impacto financeiro.
Paralelamente, a operadora enfrentou uma grave crise na gestão contábil, caracterizada por falhas técnicas, atrasos no cumprimento de obrigações fiscais, práticas contábeis irregulares que comprometeram a confiabilidade das demonstrações contábeis e geraram riscos regulatórios. Esse assunto foi objeto de discussão em diversas reuniões do Conselho Fiscal e Conselho de Administração, demonstrando esforço da operadora em recuperar sua governança e atender às exigências da ANS. Como medidas adotadas, houve a substituição da equipe contábil, a contratação de nova auditoria e a adoção de um processo estruturado de correção das irregularidades.
Do ponto de vista econômico-financeiro, os indicadores de janeiro de 2025 revelam que a operadora enfrenta um sério desequilíbrio, com índices insuficientes de Liquidez, evidenciando incapacidade da operadora de honrar seus compromissos de curto e longo prazo; Insuficiência de Capital Regulatório de R$ 96 milhões; Passivo a descoberto de R$ 64,7 milhões, e Prejuízos Acumulados de R$ 84,4 milhões. Embora tenha sido registrado um resultado positivo de R$ 5,69 milhões em janeiro de 2025, e uma sinistralidade de 0,29, esses números foram diretamente impactados pela da reversão da PEONA (através da Nota Técnica aprovada pela ANS), não sendo indicativos de uma recuperação em sua operação. Além disso, o prazo médio de pagamento de eventos de 106 dias indica atrasos relevantes nos repasses à rede prestadora.
A operadora também apresenta desconformidade com as exigências de ativos garantidores, com insuficiência de R$ 26,8 milhões em relação ao mínimo exigido pela RN 521/2022. Apesar da manutenção do Fator PIC em 0,00%, os riscos regulatórios permanecem elevados.
Em síntese, a Unimed Montes Claros enfrenta uma situação de grande fragilidade financeira e regulatória, o que exige a continuidade de medidas emergenciais e um processo de reestruturação robusto e bem conduzido. A diretoria tem demonstrado empenho em reverter o quadro, mas os desafios ainda são consideráveis.
Diante dos fatos apresentados neste relatório, recomendo a manutenção da Direção Fiscal para acompanhamento da situação econômico-financeira da operadora.
Ademais, só foi nomeada diretora fiscal à requerida em razão da deterioração da situação econômico-financeira já verificada da operadora durante o prazo de vigência do regime de Termo de Assunção de Obrigações Econômico-Financeiras (TAOEF), que, nos termos da RN 523/2022 da ANS, trata-se de um conjunto de medidas e ações que visam corrigir anormalidades econômico-financeiras detectadas no funcionamento de operadora de planos privados de assistência à saúde.
Tais elementos bastam para demonstrar a incapacidade da pessoa jurídica de arcar com as custas processuais e honorários de advogado, de modo que deve ser deferido o benefício da justiça gratuita à ré sem retroação dos efeitos.
2. Da intimação da diretora técnica.
Postula a administradora de benefícios requerida pela conversão do julgamento em diligência para intimação da diretora técnica nomeada pela ANS à operadora do plano de saúde corré nos termos do artigo 24 da Lei 9656/98, Sra. Dulcemar Gonçalves de Barros (evento 194, DOC9).
Contudo, a apelante não demonstrou a necessidade ou utilidade da diligência pretendida, especialmente porque, mesmo que a diretora técnica assumisse que a operadora de plano de saúde foi responsável pelos descumprimentos assistenciais e teria a obrigação de garantir a cobertura assistencial aos beneficiários, em nada isso alteraria a responsabilidade da administradora de benefícios para com a parte autora, como será explorado adiante.
Desse modo, deve ser rejeitada a preliminar.
3. Da rescisão unilateral
O autor é portador de Transtorno de Espectro do Autismo (TEA), que exige acompanhamento constante com equipe multidisciplinar, cujo tratamento inclui acompanhamento com equipe multidisciplinar de fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicólogo e demais especialidades (evento 1, DOC9 a evento 1, DOC12), tratamento que vinha sendo realizado por meio dos serviços de assistência à saúde ofertados, inclusive com o ajuizamento da demanda n. 5000704-35.2023.8.24.0144 para garantia da cobertura.
Contudo, em 20/03/2024, recebeu a informação de que o plano de saúde não estaria mais disponível a partir de 10/04/2024, em razão da rescisão do contrato entre a operadora e a administradora (evento 1, DOC13).
Convém ressaltar que não se aplica o art. 13, parágrafo único, II e III da Lei n. 9.656/98, que proíbe rescisão unilateral imotivada de plano de saúde individual ou familiar, considerando que o plano contratado pelo autor é coletivo por adesão.
Assim, tratando-se de plano de saúde coletivo por adesão, não é vedada a rescisão unilateral por parte da operadora, desde que observados os requisitos previstos contratualmente. É incontroverso que era exigível prévia comunicação com antecedência mínima de 60 (sessenta) dias para rescisão do contrato, conforme notificação enviada pela operadora à administradora (evento 47, DOC3):
Considerando que o contrato supramencionado foi prorrogado automaticamente e prevê a possibilidade de rescisão do instrumento contratual, desde que devidamente informada com antecedência de 60 (sessenta) dias, é crucial destacar que manter a carteira da Allcare está deteriorando, de forma célere, a situação econômica financeira da Unimed Norte de Minas.
Não obstante, a referida notificação foi enviada em 11/03/2024, mas comunica o encerramento da prestação de serviços de assistência à saúde aos beneficiários pela operadora a partir de 10/04/2024, de modo que não foi respeitado o prazo mínimo de 60 dias de antecedência para a rescisão unilateral do contrato.
Argumenta a operadora requerida que o prazo mínimo foi cumprido, apontando que, no dia 15/12/2023, enviou notificação extrajudicial à administradora, formalizando a rescisão do contrato referente à apólice 1729, com encerramento da cobertura assistencial em 13/02/2024 (evento 51, DOC5). Não obstante, como demonstrado pela administradora de benefícios, recebeu "Notificação de Reajuste Anual da Apólice 1729" em 30/01/2024, com proposta pela operadora de reajuste anual de 22,78% para manutenção do contrato (evento 47, DOC9).
Além disso, em 15/02/2024, a operadora enviou termo aditivo do contrato de assistência à saúde celebrado com a administradora, em que era previsto reajuste de 22,78% para mensalidades, coparticipações e cobertura do transporte aéreo da apólice 1729, com vigência até julho de 2024 (evento 47, DOC10).
Com efeito, verifica-se que a comunicação datada de 15/12/2023, em que havia sido manifestada a rescisão unilateral, foi revogada por seu comportamento contraditório nos meses seguintes, especialmente ao propor medidas para a continuidade do contrato e enviar termo aditivo com disposições vigentes até julho de 2024.
Posteriormente, em 18/03/2024 o termo aditivo foi anulado, após já ter sido enviada a notificação datada de 11/03/2024 (evento 47, DOC3), que, como já exposto, por prever o cancelamento da assistência médica a partir de 10/04/2024, descumpriu o prazo de antecedência mínima de 60 (sessenta) dias.
Além disso, com o cancelamento do plano de saúde coletivo do qual era beneficiário, a parte autora possuía o direito à migração a outro benefício, na modalidade individual ou familiar, o qual deve ser disponibilizado pela operadora de plano de saúde, nos termos do art. 1º da Resolução nº 19/1999 do Conselho Nacional de Saúde Suplementar (CONSU):
Art. 1º As operadoras de planos ou seguros de assistência à saúde, que administram ou operam planos coletivos empresariais ou por adesão para empresas que concedem esse benefício a seus empregados, ou ex-empregados, deverão disponibilizar plano ou seguro de assistência à saúde na modalidade individual ou familiar ao universo de beneficiários, no caso de cancelamento desse benefício, sem necessidade de cumprimento de novos prazos de carência.
Nesse mesmo sentido, em razão da submissão a tratamento continuado pelo autor, aplica-se a tese fixada no Tema n. 1.082 pelo Superior TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apelação Nº 5000347-21.2024.8.24.0144/SC
RELATOR: Desembargador EDUARDO GALLO JR.
EMENTA
EMENTA: DIREITO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE COLETIVO POR ADESÃO. RESCISÃO UNILATERAL. MANUTENÇÃO DOS SERVIÇOS DE ASSISTÊNCIA MÉDICA. PARCIAL ADEQUAÇÃO.
I. CASO EM EXAME
1. Apelações cíveis contra sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos para condenar a operadora de plano de saúde e a administradora de benefícios à manutenção do plano de saúde contratado pelo autor, mediante pagamento da contraprestação, sob pena de multa diária.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO
2. Há cinco questões em discussão: (i) saber se a operadora de plano de saúde faz jus à gratuidade da justiça; (ii) saber se é necessária a conversão do julgamento em diligência para intimação da diretora técnica nomeada pela agência reguladora à operadora; (iii) saber se a rescisão unilateral do plano de saúde coletivo pela operadora foi realizada em conformidade com os requisitos legais e contratuais; (iv) saber se a administradora e a operadora são responsáveis solidárias pela continuidade do tratamento do beneficiário; e (v) saber se é cabível a fixação de prazo de duração para a obrigação de manutenção do plano de saúde.
III. RAZÕES DE DECIDIR
3. A operadora de plano de saúde faz jus ao deferimento da gratuidade da justiça, sem efeitos retroativos, tendo em vista que passa por situação de grande fragilidade financeira, com sérios desequilíbrios e incapacidade de honrar com seus compromissos.
4. Não foi demonstrada a necessidade da conversão do julgamento em diligência, pois mesmo que a diretora técnica assumisse que a operadora de plano de saúde foi responsável pelos descumprimentos assistenciais e tem a obrigação de garantir a cobertura assistencial aos beneficiários, em nada isso alteraria a responsabilidade solidária da administradora, na condição de fornecedora na cadeia de consumo.
5. A primeira notificação extrajudicial enviada pela operadora noticiando o rompimento do vínculo com a administradora foi revogado por comportamento contraditório nos meses seguintes, especialmente ao propor medidas para a continuidade do contrato e enviar termo aditivo com disposições vigentes até ano seguinte.
6. A operadora do plano de saúde não obedeceu ao prazo mínimo estabelecido contratualmente para notificação acerca da rescisão unilateral, tendo em vista que a segunda notificação extrajudicial foi enviada sem observar a antecedência mínima de sessenta dias.
7. Com a rescisão unilateral do contrato, cabe à operadora de plano de saúde operacionalizar a migração para plano de saúde individual ou familiar, obrigação da qual não se desincumbiu. Enquanto não operacionalizada a migração, faz jus a autora ao restabelecimento do plano de saúde na modalidade coletiva.
8. Apesar de a rescisão ter sido promovida pela operadora do plano de saúde, não há como excluir a administradora de benefícios da obrigação de restabelecimento do plano, diante da responsabilidade solidária das fornecedoras em cadeia de consumo. Além disso, a administradora possui atribuições específicas e exclusivas no plano de saúde coletivo por adesão, que, se não cumpridas, tornam inviáveis a continuidade dos serviços.
9. Incabível a fixação de prazo de duração para a obrigação de manutenção dos serviços de assistência médica, considerando que o plano coletivo deve ser mantido até que seja operacionalizada a migração para plano individual ou familiar, garantindo que o tratamento médico prossiga sem interrupções, o que deve ser entendido como condição para extinção da obrigação de fazer fixada.
IV. DISPOSITIVO E TESE
10. Recurso da operadora parcialmente provido para deferir a gratuidade da justiça. Apelo da administradora desprovido.
________
Dispositivos relevantes citados: CPC, art. 99, § 3º; Lei 9.656/98 art. 13, p. ú., II, e 24.
Jurisprudência relevante citada: STJ, Súmula 481; STJ, Tema 1.082; STJ, REsp n. 1.471.569/RJ, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 01.03.2016; STJ, REsp n. 1.836.912/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 20.10.2020.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 6ª Câmara de Direito Civil do decidiu, por unanimidade, conhecer de ambos os recursos, negar provimento à apelação da administradora de benefícios e dar parcial provimento à apelação da operadora de plano de saúde para deferir a gratuidade da justiça, sem efeitos retroativos, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Florianópolis, 11 de novembro de 2025.
assinado por EDUARDO MATTOS GALLO JUNIOR, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://2g.tjsc.jus.br//verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 6842317v7 e do código CRC 401c7798.
Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): EDUARDO MATTOS GALLO JUNIOR
Data e Hora: 12/11/2025, às 10:52:36
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Extrato de Ata EXTRATO DE ATA DA SESSÃO ORDINÁRIA FÍSICA DE 11/11/2025
Apelação Nº 5000347-21.2024.8.24.0144/SC
RELATOR: Desembargador EDUARDO GALLO JR.
PRESIDENTE: Desembargador EDUARDO GALLO JR.
PROCURADOR(A): ANTENOR CHINATO RIBEIRO
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Ordinária Física do dia 11/11/2025, na sequência 22, disponibilizada no DJe de 27/10/2025.
Certifico que a 6ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:
A 6ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DE AMBOS OS RECURSOS, NEGAR PROVIMENTO À APELAÇÃO DA ADMINISTRADORA DE BENEFÍCIOS E DAR PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO DA OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE PARA DEFERIR A GRATUIDADE DA JUSTIÇA, SEM EFEITOS RETROATIVOS APÓS A LEITURA DO VOTO, A ADVOGADA LAYSE JUCI VILELA DECLINOU DO PEDIDO DE SUSTENTAÇÃO ORAL.
RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador EDUARDO GALLO JR.
Votante: Desembargador EDUARDO GALLO JR.
Votante: Desembargador MARCOS FEY PROBST
Votante: Desembargador JOAO DE NADAL
NEUZELY SIMONE DA SILVA
Secretária
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Identificações de pessoas físicas foram ocultadas