Decisão 1042148-10.2024.8.26.0053

Processo: 1042148-10.2024.8.26.0053

Recurso: Apelação

Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julga-

Câmara julgadora: Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de

Data do julgamento: 9 de junho de 2025

Ementa Técnica

APELAçãO – APELAÇÃO – Responsabilidade civil – Pre- tensão de indenização por danos materiais e morais em virtude de alegada prisão ilegal por erro judiciário – R. sentença de improcedência – Pretensão de refor- ma – Cabimento – Autor que foi confundido com um estuprador em série, preso cautelarmente, indiciado, processado e condenado – Cumprimento de pena pri- vativa de liberdade, por mais de três anos – Revisão 509 criminal posterior que o absolveu, nos termos do art. 386, inc. IV, do Código de Processo Penal – Erro ju- diciário constatado – Responsabilização que indepen- de de dolo ou culpa na atuação dos agentes públicos Jurisprudência - Direito Público envolvidos – Precedentes do C. STF e deste Eg. Tri- bunal de Justiça – Nexo de causalidade entre a falha na prestação do serviço público da Justiça e os danos suportados pelo autor caracterizado – Configurada a responsabilidade civil do Estado – Inteligência do art. 5º, inc. LXXV, c.c. art. 37, § 6º, da Constituição Fede- ral – Dever de indenizar – Danos materiais – Devidos na forma de lucros cessantes, a serem apurados em sede de liquidação de sentença – Danos morais – Con- figuração – Situação que ultrapassou o mero aborre- cimento cotidiano – Necessidade de atualização das bases de dados públicas, para desvincular a imagem e os dados do autor dos delitos praticados pelo verda- deiro criminoso – Reforma da r. sentença – Recurso provido.(TJSP; Processo nº 1042148-10.2024.8.26.0053; Recurso: Apelação; Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julga-; Data do Julgamento: 9 de junho de 2025)

Voto / Fundamentação

, em 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Após sustentação oral do Dr. Alexandre Monteiro Fortes, deram provimento ao recurso. V.U. Declara voto convergente a 3ª Juíza”, de conformidade com o voto da Relatora, que integra este acórdão. (Voto nº 24.261) O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores SILVIA MEIRELLES (Presidente), SIDNEY ROMANO DOS REIS e MARIA OLÍVIA ALVES. São Paulo, 9 de junho de 2025. SILVIA MEIRELLES, Relatora


Ementa: APELAÇÃO – Responsabilidade civil – Pre- tensão de indenização por danos materiais e morais em virtude de alegada prisão ilegal por erro judiciário – R. sentença de improcedência – Pretensão de refor- ma – Cabimento – Autor que foi confundido com um estuprador em série, preso cautelarmente, indiciado, processado e condenado – Cumprimento de pena pri- vativa de liberdade, por mais de três anos – Revisão 509 criminal posterior que o absolveu, nos termos do art. 386, inc. IV, do Código de Processo Penal – Erro ju- diciário constatado – Responsabilização que indepen- de de dolo ou culpa na atuação dos agentes públicos Jurisprudência - Direito Público envolvidos – Precedentes do C. STF e deste Eg. Tri- bunal de Justiça – Nexo de causalidade entre a falha na prestação do serviço público da Justiça e os danos suportados pelo autor caracterizado – Configurada a responsabilidade civil do Estado – Inteligência do art. 5º, inc. LXXV, c.c. art. 37, § 6º, da Constituição Fede- ral – Dever de indenizar – Danos materiais – Devidos na forma de lucros cessantes, a serem apurados em sede de liquidação de sentença – Danos morais – Con- figuração – Situação que ultrapassou o mero aborre- cimento cotidiano – Necessidade de atualização das bases de dados públicas, para desvincular a imagem e os dados do autor dos delitos praticados pelo verda- deiro criminoso – Reforma da r. sentença – Recurso provido.





VOTO

Trata-se de apelação interposta contra a r. sentença de fls. 322/325, que julgou improcedente a ação indenizatória por alegado erro judiciário que culmi- nou na prisão do autor. Apela o vencido (fls. 330/347), sustentando, em síntese, os mesmos argu- mentos expostos em sua inicial, no sentido de que restou caracterizado o dever de indenizar diante da comprovação de erro judiciário, consistente em falhas no processo criminal em que foi condenado por ter sido confundido com o es- tuprador em série conhecido como “Maníaco do Tatuapé”, o que culminou em sua prisão indevida, sendo posteriormente absolvido, por comprovação da não autoria, em sede de revisão criminal. Aduz que a r. sentença fundou-se em pre- missa equivocada, pois não se exige a presença de erro grosseiro para fins de indenização decorrente de revisão criminal e prevista no art. 630, do CPP, a qual prescinde de ato ilícito e decorre da correção de erro judiciário por meio de revisão criminal, hipótese de que trata a presente demanda. Desse modo, uma vez reconhecido que a condenação foi injusta ou errônea, exsurge o dever do Estado de indenizar. Assim, requer a reforma da r. sentença. Contrarrazões a fls. 354/361. É o relatório. O recurso comporta provimento. 510 Como sintetizou o juízo de origem: “A. ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais contra FA- ZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, alegando, em suma, que foi vítima de erro judiciário. Afirmou que foi confundido com o estu- Jurisprudência - Direito Público prador em série conhecido como ‘Maníaco do Tatuapé’, sendo acusado por 7 mulheres, tendo por base a acusação o reconhecimento pessoal feito pelas vítimas. Asseverou que foi condenado em um dos processos e que permaneceu preso por 3 anos, 8 meses e 2 semanas, sendo poste- riormente colocado em regime aberto. Alegou que ajuizou revisão crimi- nal, na qual foi absolvido e que, após realização de teste de DNA, que apontou outro indivíduo, o Ministério Público requereu a absolvição nos demais processos. Asseverou que houve falhas no processo criminal em que foi condenado e que sequer foram apreciados os pedidos de produ- ção de provas realizados pela Defesa. Afirmou que sofreu danos morais, pois teve sua vida interrompida por quase 4 anos, perdendo oportunida- des de carreira e tendo que adiar o sonho de ser pai. Alegou que sofreu, ainda, danos materiais, consistentes nos salários que deixou de auferir no período.” Com efeito, a reparação de danos por erro judiciário está prevista no arti- go 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal e, para que seja aplicável e conce- dida a indenização do âmbito cível, não depende de simples alegação de prejuí- zo, mas da efetiva prova sobre o abuso ou desvio de autoridade. Note-se que, regra geral, conforme aponta a doutrina e a jurisprudência majoritárias, os atos judiciais não dão origem à responsabilização do Poder Pú- blico: “RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. ATO DO PODER JU- DICIÁRIO. O princípio da responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do Poder Judiciário, salvo os casos expressamente decla- rados em lei. Orientação assentada na Jurisprudência do STF. Recurso conhecido e provido.” (STF – RE 219.117/PR). Isso porque o Judiciário exerce parcela de soberania estatal, sendo que os magistrados são agentes políticos, em sentido estrito, investidos para o exercí- cio de atribuições constitucionais, dotados de liberdade funcional, gozando de prerrogativas próprias e leis específicas, bem como pelo fato de que, de suas decisões, à parte é permitido recorrer. Se outro fosse o entendimento, comprometida ficaria a atuação indepen- dente do magistrado. Neste sentido, o jurista João Paulo dos Santos Melo discorre: “O juiz não é um funcionário público, mas um agente político, não po- dendo ser responsabilizado do mesmo modo dos demais agentes públi- cos. A imposição é de responsabilidade por ato ou omissão jurisdicional afetaria a independência da magistratura. Haveria restrição à soberania do Estado, já que o ato do juiz é um ato de soberania. Ocorreria a au- sência de previsão legal para a responsabilização; e a intangibilidade do preceito da coisa julgada.” (in “Duração Razoável do Processo”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 174). Jurisprudência - Direito Público Como dito alhures, as exceções devem estar previstas em lei, v.g., o dis- posto no artigo 143, incisos I e II, do CPC, e o artigo 5º, inciso LXXV, da CF, podendo somente se cogitar de indenização por erro judiciário quando com- provada a existência do dolo e seu reconhecimento pela autoridade judiciária competente, bem como havendo a comprovação do nexo de causalidade entre esse erro e o efetivo prejuízo. À Fazenda, por sua vez, se permite a comprovação de culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, de forma a isentá-la, total ou parcialmente, do dever de indenizar. No presente caso, o autor, ora apelante, foi preso temporariamente em 29/02/2016 (fls. 27/28) por ter sido reconhecido como o autor de roubo e ten- tativa de estupro sofrido pela vítima R., conforme o auto de reconhecimento fotográfico acostado a fls. 25. À época, era procurado um estuprador em série conhecido como “Ma- níaco do Tatuapé”, que fizera inúmeras vítimas naquela região, sendo a vítima supracitada uma delas. Posteriormente, a sua prisão foi convertida em preventiva até a sua con- denação na ação penal nº (...) (fls. 76/94), na qual R. e outras vítimas o reconhe- ceram como o suposto autor dos delitos. O ora apelante interpôs apelação naqueles autos, a qual foi desprovida pela C. 12ª Câmara Criminal Extraordinária deste Eg. Tribunal de Justiça (fls. 124/149). Posteriormente, o autor ajuizou revisão criminal (fls. 180/200), que foi deferida pelo C. 6º Grupo de Direito Criminal para absolvê-lo da imputação feita na ação penal nº (...) (fls. 231/259). Conforme alhures exposto, embora os atos judiciais não deem origem à responsabilização civil do Estado, no caso de erro judiciário, a responsabilidade independe de dolo ou culpa da atuação dos agentes públicos envolvidos. Nesse sentido, já decidiu o Eg. STF: “EMENTA: Erro judiciário. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Direito à indenização por danos morais decorrentes de condenação des- constituída em revisão criminal e de prisão preventiva. CF, art. 5º, LXXV. C. Pr. Penal, art. 630. 1. O direito à indenização da vítima de erro judiciário e daquela presa além do tempo devido, previsto no art. 5º, LXXV, da Constituição, já era previsto no art. 630 do C. Pr. Penal, com a exceção do caso de ação penal privada e só uma hipótese de exoneração, quando para a condenação tivesse contribuído o próprio réu. 512 2. A regra constitucional não veio para aditar pressupostos subjetivos à regra geral da responsabilidade fundada no risco administrativo, con- forme o art. 37, § 6º, da Lei Fundamental: a partir do entendimento con- solidado de que a regra geral é a irresponsabilidade civil do Estado por Jurisprudência - Direito Público atos de jurisdição, estabelece que, naqueles casos, a indenização é uma garantia individual e, manifestamente, não a submete à exigência de dolo ou culpa do magistrado. 3. O art. 5º, LXXV, da Constituição: é uma garantia, um mínimo, que nem impede a lei, nem impede eventuais construções doutrinárias que venham a reconhecer a responsabilidade do Estado em hipóteses que não a de erro judiciário stricto sensu, mas de evidente falta objetiva do serviço público da Justiça.” (RE 505393; Rel.: Min. Sepúlveda Pertence; 1ª Turma; Data do Julgamento: 26/06/2007). No mesmo sentido, já decidiu este Eg. Tribunal de Justiça: “Ação de indenização. Erro judiciário. Condenação por tráfico de dro- gas e posterior desclassificação para posse para consumo pessoal, em sede de revisão criminal. Particular que perdeu o emprego e permaneceu preso por mais de quatro anos. Responsabilidade objetiva do Estado. Indenização por erro judiciário prevista na Constituição Federal e não limitada aos casos em que evidenciada a ocorrência de dolo ou fraude. A existência de erro e o direito à indenização configuram-se apenas em situações excepcionais, não se dando por mera divergência interpreta- tiva ou por simples reversão de prisão regular anteriormente decreta. Exemplos doutrinários de cabimento. Revisão criminal que não implica necessariamente a existência de erro; desnecessidade de revisão para re- conhecimento de erro em sede própria. Caso concreto em que é possível concluir, a partir de elementos da própria revisão criminal, que ocorreu erro na afirmação e na negação de fatos objeto do processo, hipótese de erro judiciário e indenização do particular. Elementos da condena- ção ‘divorciados do contexto probante produzido’. Particular que não era alvo original da ação policial e comprovou ser usuário e ter crises recorrentes de abstinência. Revisão que conclui não haver “nenhuma evidência de tráfico no local dos fatos”. Revisão não limitada à insufi- ciência de provas, porque afasta, um a um, os elementos da condenação anterior. Conclusão, nesta sede indenizatória, pela ocorrência de erro ju- diciário. Dever de indenizar. Quantificação de danos morais e materiais. Recurso do particular parcialmente provido.” (Apelação Cível 1000913-58.2023.8.26.0648; Rel.: Luciana Bresciani; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro de Urupês - Vara Única; Data do Julgamento: 04/06/2024). No caso em tela, não se vislumbra dolo ou culpa dos agentes envolvidos no dano suportado pelo apelante, pois o juízo criminal decretou a prisão preven- tiva de forma fundamentada e, do mesmo modo, a r. sentença condenatória foi devidamente fundamentada e mantida em sede recursal. Conforme observou a magistrada de origem, “a sentença de condenação (aqui a fls. 76/94) igualmente se encontra fundamentada no reconhecimento pessoal realizado pelas vítimas, inclusive no que toca à voz do acusado, sendo certo que, no âmbito de crimes praticados na clandestinidade, sem outras teste- munhas, a palavra da vítima apresenta especial poder de convicção.” (fls. 323). Jurisprudência - Direito Público Entretanto, ainda que a palavra da vítima no tipo de crime em questão apresente especial poder de convicção, pode haver confusão quando há alguma pessoa muito parecida com o verdadeiro criminoso, ensejando uma condenação injusta. E este é o caso dos autos, posto que, em sede de revisão criminal, apurou- se a fragilidade dos fundamentos da sentença condenatória, tendo sido provado que o ora apelante não fora o autor do crime, por meio de teste de DNA que somente foi possível de realizar após colherem-se os materiais genéticos do ver- dadeiro estuprador nos outros processos criminais que correram em relação às demais vítimas do estupro, situação fundamentou a sua absolvição, nos termos do art. 386, inc. IV, do Código de Processo Penal. Note-se que a inocência do apelante não pôde ser comprovada no proces- so que correu perante a vítima deste caso, já que o estupro foi tentado. Por outro lado, há previsão legal no art. 630, do Código de Processo Pe- nal, que admite a indenização civil em casos como tais, como se verifica: “Art. 630. O tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhe- cer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos. § 1º Por essa indenização, que será liquidada no juízo cível, responderá a União, se a condenação tiver sido proferida pela justiça do Distrito Federal ou de Território, ou o Estado, se o tiver sido pela respectiva justiça. § 2º A indenização não será devida: a) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder;” Logo, havendo previsão legal para a justa indenização, faz-se ela necessá- ria para o fim de se reparar a injustiça cometida, à qual responde objetivamente o Estado. E nem há que se falar, neste caso, que a responsabilidade pela condenação foi do próprio apelante, seja porque a prova da autoria e da materialidade do fato incumbe à acusação, seja porque a prova de DNA somente foi possível em razão de sua realização nas outras ações criminais correlatas, nas quais houve o estupro consumado. Assim, fica evidente que houve falha estatal na prestação do serviço pú- blico de Justiça, já que o apelante foi indiciado, condenado e preso, por mais de três anos, permanecendo encarcerado sob a tutela do Estado, por um crime que não cometeu. Sob este prisma, restou caracterizado o nexo de causalidade entre a falha 514 na prestação do serviço público da Justiça e os danos suportados pelo ora ape- lante, o que autoriza a reparação pretendida, nos termos do art. 5º, inc. LXXV, c.c. o art. 37, §6º, da Constituição Federal. Quanto ao dano material, é incontroverso que o apelante não pôde exercer Jurisprudência - Direito Público seu trabalho regularmente durante o período em que ficou preso, razão pela qual é devida a indenização pelos lucros cessantes. No tocante ao quantum, este deverá ser apurado em sede de liquidação de sentença, correspondendo aos salários que deixou de receber durante o período em que permaneceu preso, com base no último salário constante da sua carteira de trabalho (fls. 268/270). O dano moral também restou configurado. Como se sabe, o dano moral indenizável é somente aquele que atinja pro- fundamente a esfera individual mais íntima da pessoa humana. É o dano grave, o dano que prejudica psicológica e moralmente a pessoa, atingindo seus bens imateriais mais caros. No conceito trazido por Carlos Bittar, o dano moral é qualificado como “os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração social).” (in “Reparação Civil por Danos Morais”, p. 41). Conforme pondera o mesmo autor supracitado, para fins de responsabi- lização civil por danos morais, há a necessidade de: “demonstração de que o resultado lesivo (dano) proveio de atuação do lesante (ação ou omissão anti- jurídica) e como seu efeito ou consequência (nexo causal ou etiológico)” (ob. cit., p. 17). A doutrina contemporânea aponta que os danos morais se configuram por violação dos direitos da personalidade, em virtude de sua relevância, já que são determinantes para a existência digna do ser humano. No caso, o apelante foi apontado como um estuprador em série, foi preso cautelarmente, processado, condenado e privado de sua liberdade por mais de três anos, por um crime que não cometeu, sendo o dano moral in re ipsa. À evidência que tal situação, além de lhe trazer um sentimento enorme de injustiça, afetou a sua vida pessoal de forma irreparável, sendo impossível se cogitar que o seu retorno à vida em sociedade tenha se dado de forma normal, diante da “mancha” que recaiu sobre sua idoneidade moral perante os demais de seu convívio público e particular após a sua prisão pelo crime de estupro, o que caracteriza abalo moral significativo, que deve de ser reparado. Portanto, devida a indenização. No que tange ao seu quantum, apesar do dano moral ser um sentimento de pesar íntimo da pessoa ofendida, para o qual não se encontra estimação per- feitamente adequada, não se lhe pode recusar reparação adequada. Esta deve ser estabelecida, como e quanto possível, por meio de uma soma que, apesar de não importar em uma exata reparação, representará a úni- Jurisprudência - Direito Público ca cabível nos limites humanos. Óbvio que o dinheiro não extinguirá a dor e o suplício moral sofrido pelo autor, mas servirá para compensá-lo, indireta e parcialmente. Assim, tendo em conta a situação econômico-financeira, bem como o que foi vivenciado pelo autor e o pesar e abalo emocional pelo ocorrido, e, ainda, diante da necessidade de que a reparação sirva como forma de inibir novos e futuros casos idênticos, arbitra-se o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) a título de indenização por danos morais. Sobre o valor acima incidirão juros de mora, a partir do evento danoso, com correção monetária a partir da sentença, conforme preconizam as Súmulas 54 e 362 do C. STJ, respectivamente. Por fim, cabível o acolhimento do pedido do autor, para que o Estado promova a atualização de todos os bancos de dados relacionados à segurança pública, retirando sua imagem e desvinculando-o dos delitos atribuídos ao ver- dadeiro criminoso, conhecido como “maníaco do Tatuapé”. Portanto, de rigor a reforma da r. sentença, para o fim de se julgar proce- dente a ação, nos termos supra. Pela sucumbência, arcará a requerida com o pagamento dos honorários advocatícios em favor do autor, fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação. Ressalto que o presente acórdão enfocou as matérias necessárias à moti- vação do julgamento, tornando claras as razões do decisum, e rebatendo todas as teses levantadas pelas partes capazes de infirmar a conclusão adotada pelo julgador, em observação ao que dispõe o artigo 489, § 1º, do CPC (STJ. EDcl no MS 21.315-DF, julgado em 8/6/2016 - Info 585). Todavia, para viabilizar eventual acesso às vias extraordinária e especial, considero prequestionada toda matéria suscitada, observando-se que não houve afronta a nenhum dispositivo infraconstitucional e constitucional. Ante o exposto, pelo meu voto, dá-se provimento ao recurso. DECLARAÇÃO DE VOTO CONVERGENTE (Voto nº 39.742) APELAÇÃO – Ação de indenização – Danos mate- riais e morais – Erro judiciário – Autor confundido com criminoso conhecido como “maníaco do Tatua- 516 pé” – Condenação criminal definitiva pelos crimes de roubo e estupro tentado – Cumprimento de pena privativa de liberdade, por mais de três anos – Su- perveniência de revisão criminal, pela qual foi reco- Jurisprudência - Direito Público nhecida a fragilidade dos fundamentos existentes no édito condenatório e a absolvição do autor, por estar provado que ele não concorreu para a infração pe- nal – Sentença de improcedência – Pretensão de re- forma – Possibilidade – Pessoa inocente confundida com o verdadeiro criminoso, estuprador em série, por semelhança física – Condenação fundada no reconhe- cimento da vítima – Autor que respondeu a outros seis processos crime e, em todos, foi absolvido – Coleta de material genético do verdadeiro criminoso em outras vítimas – Indenização assegurada pelo art. 5º LXXV, da CF – Responsabilidade objetiva do Estado que não se aplica aos atos judiciais, salvo nos casos de erro ju- diciário – Hipótese que não se confunde com a respon- sabilidade civil do magistrado, nos termos do art. 143 do CPC – Autor que não pôde exercer regularmente seu trabalho após o encarceramento – Devido o paga- mento dos salários do período – Dano moral indenizá- vel – Precedente – Provimento do recurso. Adotado o relatório de fls. 372/373, elaborado pela E. Relatora Desa. Sil- via Meirelles, acompanho o seu entendimento para dar provimento ao recurso de apelação interposto pelo autor A. e reconhecer a procedência do pedido inde- nizatório formulado contra o Estado de São Paulo. Consta dos autos que o autor foi confundido com um criminoso conhe- cido como “maníaco do Tatuapé”, estuprador em série, em razão de semelhan- ça física. Foi preso cautelarmente e respondeu processo crime pelos delitos de roubo e estupro tentado, vindo a ser condenado definitivamente, com base no reconhecimento pessoal da vítima. Cumpriu pena restritiva de liberdade, por três anos, oito meses e duas semanas. Posteriormente, foi absolvido em sede de revisão criminal, pela qual foi reconhecida a fragilidade dos fundamentos existentes no édito condenatório e a absolvição do autor, por estar provado que ele não concorreu para a infração penal (art. 386, IV, do CPP). Diante disso, o autor requer a responsabilização civil do Estado por erro judiciário e a condenação do requerido no pagamento de indenização por danos materiais, relativos aos salários que deixou de ganhar no período de encarcera- mento, e por danos morais. Requer também que sua fotografia seja retirada de álbum de suspeitos da Polícia Civil, bem como para que conste a indicação de “erro judiciário” em seus prontuários. E julgo que ele tem razão. Jurisprudência - Direito Público Com efeito, a Constituição Federal assegura a indenização do condenado por erro judiciário, nos termos do art. 5º LXXV. O dispositivo constitucional não condiciona a indenização à demonstração de dolo ou culpa dos agentes do Estado. Já o art. 37, §6º, da Constituição Federal estabelece que: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços pú- blicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”. É verdade que, como bem anotou a E. Relatora Desa. Silvia Meirelles, em regra os atos judiciais não dão origem à responsabilização civil do Poder Público. Mas, no caso do erro judiciário, a responsabilidade independe de dolo ou culpa da atuação dos agentes públicos envolvidos. Como, aliás, já decidiu o Col. Supremo Tribunal Federal: EMENTA: Erro judiciário. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Direito à indenização por danos morais decorrentes de condenação desconstituída em revisão criminal e de prisão preventiva. CF, art. 5º, LXXV. C. Pr. Penal, art. 630. 1. O direito à indenização da vítima de erro judiciário e daquela presa além do tempo devido, previsto no art. 5º, LXXV, da Constituição, já era previsto no art. 630 do C. Pr. Penal, com a exceção do caso de ação penal privada e só uma hipótese de exoneração, quando para a condenação tivesse contribuído o próprio réu. 2. A regra constitucional não veio para aditar pressupostos subjeti- vos à regra geral da responsabilidade fundada no risco administrativo, conforme o art. 37, § 6º, da Lei Fundamental: a partir do entendimento consolidado de que a regra geral é a irresponsabilidade civil do Estado por atos de jurisdição, estabelece que, naqueles casos, a indenização é uma garantia individual e, manifestamente, não a submete à exigência de dolo ou culpa do magistrado. 3. O art. 5º, LXXV, da Constituição: é uma garantia, um mínimo, que nem impede a lei, nem impede eventuais construções doutrinárias que venham a reconhecer a responsabilidade do Estado em hipóteses que não a de erro judiciário stricto sensu, mas de evidente falta objetiva do serviço público da Justiça. (RE 505393, Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julga- do em 26-06-2007, DJe-117 DIVULG 04-10-2007 PUBLIC 05-10-2007 DJ 05-10-2007 PP-00025 EMENT VOL-02292-04 PP-00717 LEXSTF v. 518 29, n. 346, 2007, p. 296-310 RT v. 97, n. 868, 2008, p. 161-168 RDDP n. 57, 2007, p. 112-119). No mesmo sentido, ainda: “Quer isto dizer que a responsabilidade do Poder Judiciário pela atividade jurisdicional, fundada que é no § 6º do artigo Jurisprudência - Direito Público 37 da Constituição Federal, não se confunde com a responsabilidade civil do magistrado, que estaria restrita às hipóteses do artigo 143 do Código de Processo Civil, e seria sujeita à prova do elemento subjetivo (que, no caso, identifica-se ao dolo ou à fraude). Essa responsabilidade pela atividade segue, pois, o mecanismo normal de imputação da responsabilidade civil ao Estado, perfazendo-se com a comprovação dos nexos de causalidade e de imputação, da efetividade do dano e da infração jurídica objetiva por parte do aparato judiciário.”. (TJSP; Apelação Cível 1000913-58.2023.8.26.0648; Relatora: Lu- ciana Bresciani; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro de Urupês - Vara Única; Data do Julgamento: 04/06/2024; Data de Registro: 05/06/2024). No presente caso, não se vislumbra dolo ou culpa dos agentes envolvidos no dano suportado pelo autor. Na verdade, verifica-se a regularidade da inves- tigação policial e as decisões judiciais fundamentadas que ensejaram a prisão cautelar do autor, seguida da condenação definitiva, fundada no reconhecimento da vítima, e o cumprimento da pena privativa de liberdade. De fato, como bem anotou a i. Magistrada sentenciante, nos crimes de es- tupro praticados nas circunstâncias criadas pelo verdadeiro criminoso, em locais isolados, sem testemunhas, a palavra da vítima assume maior importância e o reconhecimento do criminoso é um elemento de prova relevante para a conde- nação. Mas isso não impede que, em casos excepcionais, pessoas muito pareci- das com o verdadeiro criminoso sejam confundidas, reconhecidas pelas vítimas e condenadas injustamente, como ocorreu no presente caso. É um risco da pró- pria atividade estatal. Assim, é evidente que o Estado falhou objetivamente na prestação do ser- viço público da Justiça, mesmo que os agentes envolvidos tenham se utilizado de meios legais e legítimos de atuação. Ora, uma pessoa inocente, sem qualquer relação com o delito investiga- do, foi formalmente indiciada, encarcerada, processada e condenada definitiva- mente sob a tutela do Estado. Essa situação ficou reconhecida em sede de revisão criminal, pela qual se apurou a fragilidade dos fundamentos existentes no édito condenatório e a absolvição do autor, por estar provado que ele não concorreu para a infração penal (art. 386, IV, do CPP). Não se tratou de uma prisão cautelar fundamentada que veio a ser revo- gada posteriormente, com a absolvição do acusado, por insuficiência de provas. O autor foi condenado definitivamente e a sua liberdade foi privada por mais de três anos em razão de cumprimento de pena por crimes que ele sequer cometeu. Além disso, o autor respondeu a outros seis processos crime sob acusa- ções semelhantes, por crimes cometidos pelo verdadeiro “maníaco do Tatuapé”. Mas nesses processos ele foi absolvido e não cumpriu pena. Jurisprudência - Direito Público É verdade que a inocência do autor foi demonstrada de maneira inequívoca após a coleta de material genético do verdadeiro criminoso nas outras vítimas de estupro, o que não foi possível no processo crime pelo qual o autor foi condenado, pois ele respondeu por estupro tentado. De qualquer forma, não pode ser atribuído ao autor a responsabilidade por sua condenação criminal, ou seja, que ele não se desincumbiu de provar sua inocência, uma vez que a prova da autoria e da materialidade do crime é uma incumbência da acusação e não da defesa. Portanto, está caracterizado o nexo de causalidade entre a falha na presta- ção do serviço público da Justiça e os danos suportados pelo autor, a autorizar a reparação pretendida, nos termos do art. 5º, LXXV, c.c. o art. 37, §6º, da Cons- tituição Federal. Quanto ao dano material, não há controvérsia de que o autor não pôde exercer o seu trabalho regularmente em decorrência do encarceramento deter- minado em sede de investigação policial e processo crime. Desse modo, como bem anotado pela E. Relatora Desa. Silvia Meirelles, é devida a indenização correspondente aos valores salariais que deixou de rece- ber no período em que permaneceu preso, com base no último salário constante da carteira de trabalho juntada aos autos. Já o dano moral, neste caso, é perfeitamente presumível e decorre da pró- pria situação angustiante e vexatória suportada pelo autor. Em razão da falha estatal, o autor passou a ser confundido em seu meio social como um estuprador em série, respondeu a processo crime e, ao final, foi condenado injustamente, vindo a ter a sua liberdade cerceada, um dos direitos individuais mais valiosos da pessoa humana. E permaneceu encarcerado em estabelecimento prisional sob a alcunha de estuprador em série, por mais de três anos. É plenamente compreensível o sentimento de injustiça e de indignação manifestado pelo autor, que já era casado à época e que, no momento do crime, estava na sede da empresa em que trabalhava. Não é possível supor que a situação vivenciada pelo autor se equipara ao mero aborrecimento do cotidiano e nem mesmo que qualquer cidadão sujeito ao poder estatal está suscetível de ser condenado injustamente e cumprir pena privativa de liberdade, como ocorreu no caso dos autos. Não reconhecer o direito à indenização na hipótese seria mais uma falha de prestação do serviço público da Justiça. Sendo assim, acompanho o entendimento da E. Relatora Desa. Silvia Meirelles no sentido de que a indenização a título de danos morais fixada no valor de R$100.000,00 (cem mil reais) se mostra proporcional à conduta ilíci- ta estatal, sem propiciar enriquecimento indevido da parte lesada, prestando-se adequadamente à natureza ressarcitório-punitiva da indenização. Jurisprudência - Direito Público Por fim, deve ser acolhido o pedido do autor para que o requerido pro- mova a retirada de sua imagem de qualquer base de dados ou de investigação policial envolvendo os delitos atribuídos ao verdadeiro criminoso, conhecido como “maníaco do Tatuapé”. Ante o exposto, pelo meu voto e para os fins acima, dou provimento ao recurso de apelação. MARIA OLÍVIA ALVES, 3ª Juíza